sábado, novembro 11

Amélia

O Lado Errado da Noite é daquelas músicas que alimentam coisas. Porque o poema é quase um exercício de "Complete a seguinte história" e dá azo a que nas noites solitárias em que um cigarro não chega para companhia, uma pessoa se ponha a pensar no que terá acontecido às personagens. Inventa-lhes um nascimento, um destino final (e o poema é tão bom, que mantendo uma coerência lógica, nos permite até escrevinhar um possível enredo).
Catarina Resende fê-lo, num livro (D`O Lado Errado da Noite) onde escreve sobre cada umas das personagens, inventa outras e cria um romance acerca de um tema tão próximo - o aborto - que me fez ler o livro todo de seguida, numa aula perfeitamente horrível de Imagiologia. Foi daqueles livros bons. Mesmo bons. Sem ser um romance excepional, sem ter um estilo fora-de-série, tocou-me por ser tão palmaníaco. Qualquer um que, como eu, se apanhe a traulitar aquelas primeiras notas de piano (que me fazem sempre lembrar uma canção de embalar e me levam de seguida, sem intervalo, ao concerto no CCB, onde o Jorginho nos fez voar - lembras-te, Hugo?) , fica a olhar para o livro e agradece que alguém tenha mostrado que os poetas servem para isto: para a malta escrever por dentro e por fora.
Quando discuto o aborto e a sua despenalização, raramente me ocorre que a situação possa ocorrer a alguém perto de mim (whishful thinking, i guess). No entanto, ocorre-me sempre a desgraça da Amélia. E lido o livro de Catarina Resende, materializei-a, e tornou-se tudo ainda mais negro (ou claro?). As pessoas que votarão "Não" querem que a Amélia seja presa 3 anos. Isso magoa-me. E só fará com que o aborto clandestino continue a ser uma realidade. E com que histórias como a da Amélia sejam uma verdade incontornável dos lados errados da noite. Muito mais que uma mera metáfora que nos toca, e que podemos esquecer a seguir, quando começar a tocar a próxima música do CD.


"Santa Apolónia arrotava magotes de gente
Do seu pobre ventre inchado,
sujo e decadente
Quando Amélia desceu da carruagem dura e pegajosa
Com o coração danificado e a cabeça em polvorosa
Na mala o frasco de "Bien-Être" mal vedado
E o caderno dos desabafos todo ensopado
Amélia apresentava todos os sintomas de quem se dirige
Ao lado errado da noite

Para trás ficaram uma mãe chorosa e o pai embriagado
O pequeno poço dos desejos todo envenenado
A nódoa de bagaço naquela farda republicana
Que a queria levar para a cama todos os fins de semana
E o distinto patrão daquela maldita fundição
A quem era muito mais difícil dizer não
Amélia transportava todas as visões de quem se dirige
Ao lado errado da noite

Amélia encontrou Toni numa velha leitaria
Entre as bolas de Berlim com creme e o Sol que arrefecia
Ele falou-lhe de um presente bom e de um futuro emocionante
E escondeu-lhe tudo o que pudesse parecer decepcionante
Mais tarde, no quarto da pensão, chamou-lhe sua mulher
Seria ele a orientar o negócio de aluguer
Toni tinha todas as qualidades para ser um rei
No lado errado da noite

Jonas está agarrado ao seu saxofone
A namorada deu-lhe com os pés pelo telefone
E ele encontrou inspiração numa notícia de jornal
Acerca de uma mulher que foi levada a tribunal
Por ter assassinado uma criança recém nascida
O juíz era um homem que prezava muito a vida
E a pena foi agravada por tudo se ter passado
No lado errado da noite"
O Lado Errado da Noite, Jorge Palma (1985)

2 comentários:

a 11 novembro, 2006 13:20, Anonymous Anónimo disse...

Grande poema do Jorge...
Toda a sua agenda artística actualizada em www.bloguepalmaniaco.blogspot.com
newsletter/informações: contactar ladoerradodanoite@hotmail.com

 
a 11 novembro, 2006 21:10, Blogger Pulga disse...

Grande Jorge Palma :)

 

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