Casas (fragmentos)
Ouvem-se psicadelismos dos 60' e espreita-se o sol lá fora. O olhar queima-se e aqui tudo está tão calmo.
Estou só, na casa que chamei minha nestes últimos quatro anos, e a melancolia é inalada em espirais de sinapses a despolarizar ao acaso.
Aqui, a Música entranhava-se em nós. À força nos tempos mais tristes, como uma brisa sempre que regressava com um sorriso, era impossível deixar de a ouvir. Nas noites de loucura improvisava-se, as guitarras a desejar um lugar entre nós, fartas do seu ar voyeurista nas paredes.
Delírios sanguinários tingem de vermelho o seu recanto, lembrando raivas antigas, embora não em dias como este, em que as paixões mundanas afastam da mente a revolta quase sempre presente.
Há dias em que chove. Neles, há que saber deixar o tempo mudar, acariciando as nuvens.
Quem não cozinhava lavava a loiça, entre os da casa. Falava-se de política às refeições, ao acordar, ao chegar a casa com uma nova ideia, ou apenas a notícia de uma qualquer nova conquista acontecendo algures.
Faziam-se limpezas aos domingos, ao fim da manhã. O primeiro a acordar escolhe a banda sonora. Uma barulhenta, por favor, para tirar os outros da cama.
Passavam-se as horas em conversas cúmplices, planeavam-se revoluções, recebiam-se visitas que enchiam a casa a horas impróprias. Vinham para ficar, e o limitado espaço que confortavelmente poderia ser usado para repousar era ganho às cartas.
A cidade entrava pela janela. A cidade, o céu alaranjado que a cobre, os aviões e os gritos das noites de futebol.
A cidade e a Primavera traziam o amor e detroçavam as almas. Os amigos traziam as bebidas e a jovialidade.
Ainda não é o adeus, apenas aquela altura em que ele está próximo e se começam a fazer as coisas, que sempre fizemos, pela última vez, antes de uma mudança. De casa, ou de vida. Agora que vou deixar isto tudo, há saudades e vontade de mais.
4 comentários:
Da tua casa lembro-me...
... do teu clube ganhar a final da UEFA e de vocês conhecerem o meu fanatismo quando eu e o D. quase chorámos de raiva.
...dessas fantásticas noites em que eu, tu, lourenço e vicente jogávamos os lugares na cama ao king, enquanto víamos, chocados, a guerra no Iraque.
...de dormir aí mil quintas-feira seguidas no primeiro ano para fugir à casa da minha avó e ver-vos quase a chumbar por faltas a Fisiologia I.
...da noite dos clips do "Estou-me a cagar" e restantes polémicas.
...do pão com chouriço feito por nós.
...da minha última noite em Lisboa antes do Interrail (todo fodido...).
A tua casa era a música, de bandas que eu nunca conhecia e passei a gostar. Eram os livros que trocávamos, era a mesa grande onde comíamos todos. E era a tua parede, com desenhos, listas negras e os inesquecíveis versos da Martinha:
"Estou aqui como se te procurasse,
a fingir que não sei onde estás,
queria tanto falar-te e se falasse,
dizer-te as coisas que não sou capaz."
A tua casa eram as noites fantásticas, as mil revoluções que planeámos, os segredos desvendados e revelados, os manjericos que chegavam de toda a parte. E as pessoas que entravam (sabe-se lá donde! Portimão, Faro, Canadá...) a horas proibidas, as que não voltaram a entrar e tudo.
Foi demais. É como se lá tivesse morado. Como se todo o grupo fosse parte da casa. Vou ter saudades dessa. A verdadeira e única "Casa do Povo".
E fazermos aí uma festa na quarta? ;)
Grande abraço
Há tanto tempo que não me ocupo do jardim
A última vez estava frondoso
A buganvília a tingir-se de vermelho
Trepando O perfume inebriante
E as festas ao cair da tarde
Parece que foram há séculos
Noutra encarnação
Os meus amigos traziam as bebidas
E a jovialidade
O jardim enchia-se de gente
De beijos
Pelos cantos Sôfregos de desejo
Inventavamos planos de rebelião
Sonhos de transmutação
Passavamos horas a inventar
Entre duas carícias
Surgiam ideias puras e inocentes
Como a nossa vontade de tudo abarcar
Era um frenesim constante
Faz-me pena agora
Olhar para ele
Para as suas sebes abandonadas
De ramos retorcidos
Jaz tombada a grande epícea
E uma enorme cratera
Substitui os belos canteiros de outrora
Há tanto tempo que não me ocupo do jardim
A última vez estava frondoso
A buganvília a tingir-se de vermelho
Trepando O perfume inebriante
E as festas ao cair da tarde
Parece que foram há séculos
Noutra encarnação
Mas vais ser meu vizinho. Mas o que é que tu queres mais?!
Também vou ter saudades de telheiras. A tua casa serviu-me de escape vezes sem conta. Cuscar as novas aquisiçoes culturais em forma de cd's ou livros, brincar com o cavaquinho do calhau (e em tempos com aquele apetite de guitarra de 12 cordas;), ver filmaços, mesmo em vespera de exame - especialmente em vesperas de exames - e falar, falar falar... Ir a telheiras era esperar o imprevisivel mas tendo como seguro o conforto de que naquela sala, sempre protegida pelo poder da biblia sagrada debaixo da mesa, nada podia correr realmente mal. Eu pelo menos sentia isso. Tirando a vez que comeste as oreo e eu tive de beber nao sei que de penalty, essa noite ainda pensei que as coisas podiam dar po torto... Nao sei como vai ser a minha pobre vida sem telheiras. Para onde vou eu fugir agora quando precisar de um espaço que me compreenda?
A ultima vez que toquei 33 vezes ah tua campainha nao sabia que ia ser de facto a ultima e ainda bem. Despedi-me de telheiras com esse 'hasta luego' isento de melancolias. Nada de olhares nostalgicos para as coisas ah espera que um ultimo significado salte delas, me digam adeus. As vezes as depedidas estragam tudo com o seu peso triste. Assim a ultima vez que passei as maos pelos fios de chuva da sala de telheiras nao foi diferente das outras vezes, soube-me igual. Soube-me bem.
Boa sorte com o teu novo ninho Hugo =)
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