quarta-feira, abril 12

Farpas de Abril .02

Ainda ninguém soube esclarecer-me se Vale da Égua existe mesmo ou se a tabuleta surpreende o transeunte apenas na curva da estrada cunhalesca. No entanto, num lugarejo não muito distante desse sistema narrativo, vivia um homem chamado Virgílio.
Os pais de Virgílio morreram de tuberculose quando ele era ainda uma criança de colo. O menino fez-se rapaz num orfanato. O rapaz casou e fez-se o sapateiro da aldeia. (Tinha mãos de pianista, os dedos delgados e delicados, ágeis e hábeis.) Arranjou um emprego na cidade, na Praça Salazar. A pequena vinha todas as manhãs ladeira abaixo para trazer o cestinho do almoço ao pai.
Agora homem feito, Virgílio fez-se doente do vinho. Trabalhava de manhã até à tardinha na loja da cidade e, quando regressava à aldeia, se fosse preciso ainda desenrascava um vizinho lá na oficina. As noites passava-as na taberna e, quando regressava a casa, se fosse preciso ainda se desenrascava na adega. Não era homem de brigas. Batia à mulher e à miúda, para as castigar pelos crimes quotidianos. Males menores que eram, de facto, as farpas de um mal maior da responsabilidade dos homens graúdos. Mas Virgílio não podia açoitar os culpados nem abanar-lhes a cadeira.
Virgílio demorou onze anos a morrer. Primeiro perdeu a memória a curto prazo, depois vieram os fantasmas. Expiava agora as culpas de todos os males num vizinho com quem tivera uma desavença quando era ainda novo. Fechado naquele quarto durante onze anos. São tantos que agora ninguém consegue lá entrar. Acabou por sucumbir à pneumonia num Inverno mais frio. Parou de respirar a meio da noite. Não havia telefone em casa – a mulher, que tratou dele até morrer, correu ao outro lado da rua para chamar a pequena, que entretanto casara na cidade e vivia num quarto andar na Praça 25 de Abril. (Ninguém me convence de que existe outra coisa – diferente de onze anos a cuidar de um demente - a que se possa chamar amor.)
Ainda ninguém soube esclarecer-me se Vale da Égua existe mesmo ou se surpreende o transeunte apenas na curva da estrada cunhalesca. Virgílio existiu mesmo, não é uma referência ao sapateiro de Santarém. E conta-se dele que atravessava os caminhos deste lugarejo até um lugarejo próximo (o que hoje é próximo seria na altura longas horas de clandestinidade) para ir ouvir o General Sem Medos.
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«- Que queria o senhor?
«- Procuro o senhor Manuel Rato.
«- E que lhe queria?
«O desconhecido olhou a mulher como para perguntar se devia responder, mas só lhe viu uns olhos negros cheios de ansiedade.
«- Sou o sapateiro de Santarém - repetiu.
«- Traz as medidas? - perguntou o homem da saca.
«- Sim, trago - disse o desconhecido, e tirou do bolso uma palmilha recortada em papel, à qual faltava um bocado.»
Manuel Tiago. In Até Amanhã, Camaradas