Des-ultra: a vingança da Curva Benfica (ou a minha maneira de me esquecer que este ano os azuis ganham e eu não)
Desculpem a extensão do post, mas esta viagem tem demasiadas coisas para serem ditas. Se se fartarem e não lerem tudo, é merecido.
Desde aquela tarde de Abril de 1991, em que o César Brito, acabadinho de saltar do banco, marcou dois golos no Estádio das Antas que deram o título de Campeão Nacional ao meu Benfica (fazendo com que eu e o meu Pai déssemos pulos no meio da sala, enquanto ouvíamos o relato pelo rádio que, já avariado, ainda guardo por uma questão de nostalgia), que as idas do Benfica ao Porto eram uma triste sina.
Em 93, logo na primeira jornada, um empate a três golos (com uma arbitragem vergonhosa contra nós, mas se suspeitarem da minha imparcialidade consultem os jornais da época), na época do penúltimo título Benfiquista, foi o melhor que conseguíramos. Seguiram-se dez anos de derrotas e humilhações, coincidindo o pior período da história Benfiquista com o melhor dos azuis. Nada podia ser pior.
Em 2004/2005, o Benfica volta a pontuar (já no Estádio do Dragão, sem metade da mística e temor do antigo “Tribunal” das Antas) com um empate a um golo e sagra-se novamente Campeão Nacional.
Dia 15 de Outubro de 2005, com o Benfica com o escudo de Campeão na manga da camisola, voltávamos ao Porto. Foi o dia da vingança da Curva Benfica, em nome de todos os Benfiquistas. E Pluribus Unum.
A minha primeira viagem nos Diabos foi justamente às Antas, e irá sair na próxima edição do Des1biga. Foi o terror. O Porto e Guimarães são as únicas terras onde sentimos que jogamos verdadeiramente fora de casa. Que somos forasteiros e nada bem-vindos. As esperas são o pão-nosso-de-cada-dia, as janelas do comboio vão mas não voltam para Lisboa, enfim. E não é uma mera “guerra de claques”. O povo tripeiro vai às janelas insultar-nos e mandar todos os objectos que puder. Cospem-nos e insultam-nos do pior. A polícia, também ela com sotaque suspeito, festeja os golos azuis, censura as frases que insultem sua alteza Pinto da Costa e entra no nosso sector a descarregar ao primeiro insulto mais veemente. Isto é ir ao Porto.
E maluquinhos como eu vão lá todos os anos. Eu e uns amigos prometemos que nunca falharíamos a ida lá acima até o Benfica ganhar. Não sei se toda a gente prometeu isto, mas a 15 de Outubro de 2005 vi muitas caras conhecidas das duas claques Benfiquistas com sorriso maldoso. Ia ser o nosso dia, sentíamo-lo. O fecepê perdeu muita mística ao mudar de estádio e a nação Benfiquista estava mais unida que nunca, reconquistado o ceptro dez anos fugido.
Às 11.30 da manhã partiu de Santa Apolónia o comboio vermelho. Eu vinha de inter-rail, portanto as carruagens e as estações eram uma segunda casa. Animado entre as histórias do meu mês no Leste e das histórias do mês futebolístico que eu perdera, a chegada ao Porto dá-se sem problemas. Depois de duas horas de espera na Campanha, com os nervos do jogo a fazerem-se sentir, arranca o cortejo encarnado. Há fé transbordante e vermelho imenso na multidão.
Campeões, Campeões, nós somos Campeões…! Cantávamos, em tom provocatório.
Mas no Porto nada é fácil. À chegada ao estádio temos mil controlos policiais. Para cúmulo, este ano mandam-nos descalçar à entrada. Mandam-nos entrar em grupos de trinta, rodeados pela polícia, para além dos “éne” stewarts que separavam a multidão azul do nosso caminho até à porta do nosso sector. Estou a subir as escadas com o meu grupo de trinta quando me chamam lá em baixo outra vez. Dão-me o pano do nosso núcleo para o meter ao lado da faixa principal e quando subo tenho a primeira surpresa: o meu grupo de trinta já lá vai. Resultado: estou com um pano dobrado debaixo do braço e sem saber onde é que é a minha porta. Estou na merda – Pensei imediatamente. Ainda tentei descer novamente, mas o polícia não me deixou. É ali mesmo – e aponta-me para uma porta a trinta metros. Deves estar a brincar. E encostadinho à parede, o mais longe possível da multidão azul, comecei a andar.
Ouvi nomes que nem conhecia, e só rezava para que os stewarts aguentassem o grupinho que já se babava a olhar para o meu pano. Dois velhos tentam acertar-me com os isqueiros. Outros dois mandam-me moedas (ainda ganhei dois euros) e os trinta metros parecem-me trinta quilómetros. Quando chego à porta lá me passam os nervos e mando um sinal com os dedos para a multidão. Reagem como se lhes tivesse violado as famílias. Já estou dentro do estádio e até agora tudo bem. Nem parece que vim ao Porto. Somos dois mil e quinhentos Benfiquistas, maioritariamente claques e adeptos do norte. Estádio cheio, como uma mancha azul. Dedicam-nos todo o tipo de cânticos de ódio e reagimos como podemos, dentro do facto de estarmos em minoria.
Uma primeira parte nervosa com uma oportunidade para cada lado e tanto numa bancada como noutra, os cânticos são intermitentes e nervosos. Intervalo a zero. É melhor do que o costume.
Começa a segunda parte e, inexplicavelmente, algo acorda na Curva Benfiquista. Nós e os NN começamos a cantar juntos e ainda que sem muito fulgor, a coisa começa a pender para o nosso lado. Depois começou uma daquelas ligações mágicas entre a bancada e a equipa, que faz isto parecer poesia. De repente, começámos todos a acreditar, os dois mil e quinhentos na bancada e os onze em campo. E no meio do silêncio assustado dos azuis sai o primeiro GLORIOSO! SLB! GLORIOSO SLB! Sem qualquer oposição das hostes inimigas. Está dado o mote para a nossa noite. É hoje – devemos ter pensado todos. E começou o festival.
Nelson na direita, cruzamento e o Nuno Gomes cabeceia. Estando eu na primeira fila, à medida que a bola desceu, fiquei sem a ver porque os painéis publicitários tapavam-me a visão daquela parte do campo. Entrou ou foi fora? Mas a bola é caprichosa e depois de entrar ressaltou para a parte de cima das redes, como se me piscasse o olho e dissesse estou aqui. Foi a loucura.
GOOOOOOOOOOOOOOOLLLLLLLLOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!! TOMA! TOMA! GOOOOOOOOOOOOOOLLLLLLLLLLLOOOOOOOO!!!
Saltámos, gritámos, fizemos sinais com os dedos aos sócios do Porto que estavam ao nosso lado. Mas foi bem mais do que isso. Foi a união entre a bancada e a equipa. Como se fosse um dos nossos, o Nuno Gomes festeja como se também sentisse a raiva de catorze anos sem ganhar ali e, corrosivo, aponta para o símbolo de Campeão que o Benfica ostenta na manga. Grandíssimo Nuno. Suprema humilhação, suprema vingança. Para o quadro ficar perfeito a equipa vem à bancada Benfiquista festejar connosco. Ninguém está quieto e na primeira fila, tenho o Nuno Gomes mesmo à minha frente, a dois metros, a gritar-nos `BORA! VAMOS GANHAR ESTA MERDA! sem deixar de apontar para o escudo de Campeão.
BEN FI CA! BEN FI CA! BEN FI CA! Grita a bancada até perder o fôlego. Hoje é o nosso dia.
Seis minutos a cantar, plenos de festa e nova jogada: Karyaka, Geovanni, centro e… Neste momento a bola aproxima-se da baliza, entre o central e o guarda-redes do Porto, justamente no campo de visão que eu não alcanço. A respiração suspensa e ponho-me em “bicos de pés”. Entra… peço, sem ar nos pulmões… A bola parece que passou… Lá para dentro, Nuno! Lá para dentro! E enquanto o Nuno Gomes levanta o pé direito para a empurrar, eu, instintivamente, levanto também o meu. Desequilibro-me. Vou cair. Golo? pergunto-me na queda.
GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOLLLLLLLLLLLOOOOOOOOO!!!!!!!! Grita a bancada. Já posso cair. GOOOOOOOOOOOOLLLLOOOO!!!! Grito também, nem sentido a dor enorme no joelho.
O que se seguiu foi uma festa que vingava catorze – catorze! – anos sem ganhar. A Curva Benfiquista saboreou cada cântico, apagando os anos de humilhações à chuva, os anos de roubos inacreditáveis, de abusos policiais impunes e tudo o mais. Hoje era o nosso dia.
Com sarcasmo e maldade, duas mil e quinhentas almas começam um CHEIRA BEM…CHEIRA A LISBOA! que se deve ter feito ouvir em Madrid. No lado azul ninguém quer acreditar. No nosso já não há limites para a festa. A bancada já não canta apenas. A bancada dança, vibra, joga com a própria equipa. OLÉ! cantamos a cada passe certeiro de um jogador do Benfica. Amigos de bancada, os tais da promessa, olham-me abraçados, de punho erguido em sinal de vitória e cantamos juntos que Ser Benfiquista é ter na alma a chama imensa…O estádio azul está em silêncio a ver-nos festejar. Apito final, a vingança está feita. Os jogadores vêm agradecer o apoio e dão-nos as camisolas. Nuno Gomes fazia lembrar César Brito e o espírito de 91 estava recuperado.
Retidos na escadaria de saída do estádio, com uma cobertura que dá uma acústica brutal, a Curva Benfica inicia o seu after hours e continua a cantar como se ainda jogássemos.
Até que alguém comenta, e bem, que isto está a correr demasiado bem. O que nós não suspeitávamos, é que ainda faltasse tanto para chegar a casa…
Cortejo calmo até Campanhã e até agora tudo bem. O comboio arranca com alguém a comentar que isto está a fazer um barulho esquisito e ninguém se senta porque já sabemos que até Espinho vamos levar com pedras no comboio.
Quinze minutos depois a primeira pedra. O comboio pára e toda a gente salta cá para fora. Uma carrinha foge e afinal os vidros voltam para Lisboa. Isto está a correr demasiado bem.
O problema é que o comboio fica duas horas sem arrancar. Há quem diga que é daquele barulho esquisito, mas corre também o boato que os $uper puseram um carro roubado na linha de comboio (!). Mas esses gajos são o quê? Os irmãos Dalton? Certo é que é uma trinta da manhã e estamos perto de Espinho. O comboio lá arranca e pouco a pouco, a malta adormece com o doce sabor da vitória.
Já na terra dos sonhos, acordo com um companheiro de bancada a rir-se. Isto está parado… Já arranca refila alguém. E arrancou. E parou uns metros à frente. Já está toda a gente acorda. Alguém se lembra que isto estava a fazer um barulho esquisito há bocado. Passado algum tempo corre outro boato, que os $uper nos sabotaram o comboio. Às cinco e meia da manhã isto dá vontade de rir.
Mas onde é que estamos? O T. lá vê que estamos na amieira. Risada geral e telefonemas para casa para sabermos onde é que isso fica. A informação mais precisa rezava entre Leiria e Aveiro. E como se isto não chegasse… O comboio começa a andar para trás. Já ninguém dorme e o after hours continua. A polícia diz que vamos até à Figueira mudar de locomotiva, e entretanto alguém se lembra que temos fome e sede e já devíamos estar em Lisboa. Os risos já são de demência e canta-se que o comboio pára o Benfica, o comboio pára o Benfica…
Troca de locomotivas na Figueira e caminho até Lisboa pela Linha Oeste. O comboio, pelo atraso, perdeu todas as prioridades e vamos por um caminho que só tem uma linha. O atraso é imenso, mas as gargalhadas continuam. Se o preço a pagar pela vitória era aquele, pois bem, pague-se!
Paragem numa estação qualquer que tem uma padaria e os esfomeados saem a correr. Não comemos nem bebemos nada há doze horas. Trazem-se bolos (segundo sei, a direcção do Benfica pagou tudo à padaria em questão) inteiros, divididos em fatias pelos cartões de sócio do Benfica. Entretanto alguém se entusiasma com os bolos e perde o comboio. Já nada falta à viagem. São dez da manhã e Lisboa ainda longe. Até já circulam os jornais desportivos do dia pelo comboio…
Às onze e meia a inesquecível chegada a Santa Apolónia. O domingo lisboeta é acordado pelas gargantas dos bravos que foram ao Porto vingar-se de tantos anos maus. Lembro-me do sorriso quase infantil de um velhote em Santa Apolónia, a ler “A Bola” e a rir-se da nossa chegada. Viva o Benfica! grita-nos ele. Viva! Respondemos-lhe em tom forçadamente folclórico.
E enquanto cantávamos que a CP pára o Benfica, lá chegámos a casa. Com o doce sabor da vingança nos lábios e a certeza que nunca mais íamos demorar tanto tempo a fazer trezentos quilómetros.
(a foto que se segue é da comemoração do primeiro golo. Podem encontrar-me de boné e ar de louco, mesmo ao lado dos cabelos louros do Karyaka. Inesquecível…)
http://www.picfury.com/q/SLB5B15D-1.html
Ironicamente, mesmo depois de uma vitória tão mítica, o Benfica acaba a época sem ganhar nada, a ver os azuis a rirem-se. Mas o futebol, às vezes (quando perdemos?), é mais do que apenas títulos. Desculpem novamente a extensão do post.
1 comentários:
oh amigo Manel essa coisa de dizer q nada ganhamos vindo de ti até soa a ofensa... olhe que conquistamos em "suas" terras a supertaça.
qto ao texto (para variar) muito bom!
Aquele abraço
MS VE
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