sexta-feira, junho 9

“Como sei que não tenho amigos? É muito simples: descobri-o no dia em que pensei em matar-me para lhes pregar uma boa partida, para os castigar, de certa maneira. Mas castigar quem? Alguns ficariam surpreendidos; ninguém se sentiria castigado. Compreendi que não tinha amigos. De resto, mesmo que os tivesse, não adiantaria nada. Se eu pudesse suicidar--me e ver em seguida a cara deles, então, sim, valeria a pena. Mas a terra é obscura, meu amigo, a madeira espessa, opaca a mortalha. Os olhos da alma, sim, sem dúvida, se há uma alma e se ela tem olhos! Mas aí está, não se sabe ao certo, nunca se sabe ao certo. Senão, haveria uma saída, poderíamos enfim fazer com que nos tomassem a sério. Os homens só se convencem das nossas razões, da nossa sinceridade e da gravidade das nossas penas, com a nossa morte. Enquanto vivos, o nosso caso é duvidoso, não temos direito senão ao seu cepticismo. Se houvesse, então, uma única certeza de podermos gozar o espectáculo, valeria a pena provar-lhes o que eles não querem crer e deixá-los pasmados. Mas uma pessoa mata-se e que importa que eles a acreditam ou não? Não estamos presentes para recolher o seu espanto e a sua contrição, aliás efémera, assistir, enfim, segundo o sonho de cada homem, ao nosso próprio funeral. Para deixar de ser duvidoso, é preciso, muita belamente, deixar de ser.

(…)

Ah!, caro amigo, como os homens são pobres de inventiva! Julgam sempre que nos suicidamos por uma razão. Mas podemos muito bem suicidar-nos por duas razões. Não, isso não lhes entra na cabeça. De que serve, então, morrer voluntariamente, sacrificar-nos à ideia que queremos dar de nós mesmos? Uma vez mortos, eles aproveitar-se-ão disso para atribuir ao nosso gesto motivos idiotas ou vulgares. Os mártires, caro amigo, têm de escolher entre serem esquecidos, escarnecidos ou utilizados. Quanto a ser-se compreendido, isso nunca.”

Albert Camus, in A Queda.