domingo, setembro 14

Comam os vossos Legumes! - Post 300

Este é, oficialmente, e tanto quanto eu o consigo verificar, o post nº300!

Apesar de mais ninguém se importar ou sequer andar a contar, eu achei que era apenas apropriado que fosse eu a festejar o post cujo número é não só uma referência cinematográfica, como também uma referência a bandas-desenhadas.

A minha intenção original era de festejar o post nº300 com algo como
"e pronto, já está, é o post 300... e mais nada. que é que querem mais, estou aqui a trabalhar para vocês ou quê?"

Mas achei que apesar de deliciosamente anti-climático, não era verdadeiramente adequado a um número que é uma referencia a bandas desenhadas e filmes.
Faço isso no post número 1000.

Portanto acho que hoje vou falar sobre um tema que já abordei várias vezes, mas que ainda não expliquei: os vegetais de um filme.


No outro dia estava a ver um filme com uma pessoa que me disse assim "Para mim um filme é as personagens e a construção do enredo!"

E eu não posso deixar de concordar com isto. Sim, um filme é muito isso!

As personagens e o enredo para umas pessoas, os efeitos especiais e a acção para outras, os ambientes e a temática para outras ainda.

Essas coisas são o bifinho tenro e levemente grelhado com batatinhas fritas de um filme. As personagens e o enredo são a sobremesa de um filme. O pudim, a fatia de bolo com cobertura de açúcar.

São as coisas que saltam à vista, as coisas que, em última análise, determinam se um filme é gostável ou não.

Mas eu vou falar dos Legumes dos filmes. Dos espinafres que temos de comer antes de chegar ao bife. Dos brócolos que temos de acabar antes de poder comer a sobremesa.

Coisas que estão lá, que são importantes, sem as quais não temos uma refeição completa. Coisas às quais não damos importância nenhuma, mas que são, apesar disso, importantíssimas.

Estou a falar de coisas como o ritmo do filme, a edição, a cinematografia, a fotografia, a edição de som!

Elementos essenciais de um filme, que, para todos os efeitos, SÃO o filme em si.

Um filme pode não ter cenários, pode não ter enredo, mas vai sempre ter ritmo, vai sempre ter fotografia.

São estes elementos que constroem a base sobre a qual as outras coisas mais vistosas podem assentar.

Ritmo - o que é o ritmo de um filme? Porque não é só se há muita informação, ou se as personagens se mexem depressa ou devagar. O ritmo é a concentração de informação e a forma como ela varia ao longo do filme.
Se tivermos uma sequência de cenas com muita informação (muitas personagens, muito diálogo, muito cenário, muitos efeitos especiais, muita acção, muita música) temos a impressão que essa cena é mais rápida. Não é que seja rápida, mas temos essa noção porque estamos preocupados a tentar perceber muitos pormenores.

O oposto também é verdade. Se uma cena se focar apenas em duas personagens e no seu diálogo, com uma luz simples, sem música, num ambiente minimalista, a cena parecerá mais lenta, mais calma, apesar de poder conter muita informação de enredo ou de construção de personagens.

É por esta razão que alguns filmes muito curtos parecem extremamente longos e por que filmes longos podem parecer pequenos.

Este tipo de decisão, meter mais ou menos pormenores, é feita pelo realizador. Depende da sua capacidade e compreensão daquilo que a história pede.
A mesma história pode ser contada com um ritmo rápido, ou com um ritmo lento, transmitindo sensações completamente diferentes.

Um filme com um ritmo demasiado lento corre o risco de se tornar aborrecido, um ritmo demasiado rápido torna-se cansativo.
Cabe ao editor, conforme os desejos do realizador, fazer um malabarismo com os momentos rápidos e lentos do filme. Alternando-os de modo a manter o espectador interessado e atento.

Um filme de ritmo rápido seria o Black Cat White Cat (1998) de Emir Kusturica, um filme de ritmo lento seria o Dogville (2003).

Edição - a edição é um dos aspectos mais importantes do filme e que, paradoxalmente, quanto mais bem feita está mais invisível se torna.
A edição, ou montagem, de um filme, é aquilo que garante que quando uma personagem está a mexer um braço e o plano muda, no plano seguinte o braço dela continua a mover-se a partir do mesmo ponto em que estava no plano anterior, à mesma velocidade e na mesma direcção.

Cabe ao editor aparar as cenas, de modo a que os movimentos dentro delas se tornem fluidos e contínuos. Se isto for bem feito tornar-se-á invisível. Se não for bem feito, então o facto de uma personagem ir a andar e subitamente repararmos que cada vez que a cãmara muda de plano os pés da personagem estão em posições diferentes, então já não ouvimos aquilo que ela disse, apercebemo-nos que estamos a ver um filme, e a magia perde-se.

Como estar a andar ao longo de um jardim bonito, mas estar sempre a dar topadas com os dedos dos pés no passeio, que está cheio de pedras.

De um modo mais geral, a edição também acaba por definir em grande parte o ritmo de um filme. Fazendo com que as cenas se desenrolem mais ou menos depressa, todo o aspecto do filme e sensação passada ao espectador é afectada.

Cinematografia - é aquilo que um realizador faz, quando não está ocupado a ignorar sugestões de actores e a obrigar toda a gente a trabalhar mais depressa porque estamos a perder a luz!
A cinematografia é a decisão de onde pôr a câmara, que plano apanhar, que panorâmica fazer, de onde vêm e para onde vão os actores, que elementos de cenário incluir.
Pode ser feita de um modo simples, ou de formas extremamente elaboradas.
Vêem-me à mente os ângulos bizarros do Soderbergh, as personagens a subirem colinas do Spielberg, os passing-shots do Tarantino.
É a cinematografia que mais importa ao realizador. Porque é aquilo que, no fim, o espectador vai ver. É a cinematografia que puxa o olho do espectador para onde ele tem de ir.
É a responsabilidade do realizador, com as suas capacidades cinematográficas, MOSTRAR a história. Num filme a história não é contada, é mostrada.
O realizador tem de decidir como melhor chamar a atenção para determinado pormenor, ou focar mais um actor, ou mostrar uma situação.

Fotografia - há filmes com cores extremamente vivas, com cores mais apagadas, filmes que parece que são todos em tons de pastel, filmes todos em tons de amarelo ou verde ou azul. Filmes que dão frio, filmes que transmitem calor.
Tudo isto é determinado, em grande parte, pela fotografia.
A fotografia determina a luz de um filme. A a saturação, o brilho, o contraste da luz.
Cria todo o ambiente de um filme, toda a sensação de um filme.
Há filmes cuja fotografia é tão bela, tão bem feita, que temos a impressão o tempo todo de estar a olhar para uma pintura clássica.

Edição de Som - determina o que ouvimos, quantas coisas ouvimos e quando as ouvimos. Uma vez de facto dei-me ao trabalho de contar quantas faixas de som havia numa determinada cena do Saving Private Ryan (1998) do Spielberg. Naquela cena na praça da cidade, em que o Caparzo leva um tiro de sniper, porque foi buscar a miudinha, lembram-se?
Nessa cena ouvem-se as vozes das personagens principais, as vozes dos pais da miudinha ao longe, a voz de um altifalante com propaganda alemã, o som das botas dos soldados e equipamento a chocalhar, o som do vento, o som da chuva e o som de bombas à distância.
É uma quantidade tremenda de informação, mas que está toda lá, toda a criar um ambiente, toda ela a transmitir sensações, de uma forma que não chama a atenção, mas que se lhe quisermos prestar atenção, a vemos totalmente.

E todos estes sons têm de ser escolhidos, inseridos, equilibrados. Senão tornava-se só barulho, a estática de um rádio mal sintonizado.


Todos estes aspectos, todos estes factores (e há muitos mais, mas infelizmente sou apenas um amador e amante de cinema, no fim de contas um leigo) constroem um filme. Vêm antes das personagens, ou dos efeitos especiais, ou do enredo. Se estiverem mal feitos, o resto têm muita dificuldade em aguentar-se sozinho. Chegamos ao fim do filme com a impressão que algo correu mal, mas não conseguimos pôr o dedo em cima da ferida.

Quando eu vejo um filme estou interessado na história, nas personagens, nos efeitos especiais, na acção. Mas uma parte do meu cérebro está a deitar um olhinho à edição, à fotografia, aos planos de câmara, aos sons.

Para mim um filme pode valer apenas por estas coisas. Ou ser totalmente estragado por elas.

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