Vivemos numa época onde, cada vez mais, nos apercebemos de como tudo vai mal: de como, cada vez mais, crianças morrem à fome, enquanto se enterram toneladas de alimentos, de forma a que, mantendo a escassez, se consigam regular os preços; de como, cada vez mais, nos fazem viver em estado de guerra permanente, (dizem eles) para manter a paz; de como, cada vez mais, o “trabalho é um direito transmutado em dever”1, obrigando-nos a seguir a filosofia do absurdo trabalha-consome-morre.
Vivemos numa época onde, apesar das condições objectivas de miséria física e psíquica que rodeiam a nossa existência, parece não existir forma de resistir e de lutar contra elas, pela criação de um mundo novo, verdadeiramente diferente e que atenda, por fim, às necessidades de todos. Aliás, e como dizem Gilles Deleuze e Félix Guattari “o problema fundamental da filosofia política continua a ser aquele que Espinosa viu tão claramente (e que Wilhem Reich redescobriu): Porque se batem os homens pela sua própria servidão tão obstinadamente como se da sua salvação se tratasse?”2
Talvez o problema se centre no facto de, neste mundo “globalizado”, não ser possível identificar a fonte dos nossos males, o inimigo contra o qual devemos direccionar a nossa resistência e luta, dissipando-se, assim, a nossa força de revolta. E aqui é de sobremaneira importante a diferença de atitude da actual sociedade de controlo, face aos métodos da anterior sociedade disciplinadora3. Na sociedade actual, existe uma tendência para abandonar os tradicionais meios de repressão, traduzidos classicamente pelas instituições disciplinares, de que são exemplo a fábrica, o asilo, a escola, a prisão, utilizando, ao seu invés, redes comunicacionais e sistemas de informação que manipulam os indivíduos, incutindo-lhes os padrões e comportamentos que serão aceites como normais e desejáveis. Assim, e exemplificando redutoramente com um caso nacional: enquanto que, durante a ditadura fascista de Salazar, existia união entre o povo, na luta contra um inimigo comum, que dispunha de meios repressivos concretos e explícitos (a censura, a PIDE, o Tarrafal), hoje em dia tal não se verifica, pese embora não vivermos muito melhor, tendo em conta todos os factos que referi acima.
Talvez o problema seja o da não identificação: apesar de sermos cidadãos globalizados, não apreendemos os problemas dos cidadãos de outros grupos sociais (cidadãos de outro género biológico, outras nacionalidades, outras etnias, outras classes profissionais) como nossos e nada fazemos para que os nossos esforços se juntem aos deles. Mas, não obstante, “não temos falta de comunicação, mas comunicação em excesso. Pelo contrário: é criação o que nos falta. O que nos falta é resistência ao presente.”4. Assistimos pela televisão aos confrontos em Paris (primeiro de imigrantes, depois de estudantes e sindicatos) e às manifestações de imigrantes ilegais nos EUA do último 1º de Maio, ao terrorismo de estado da guerra do Iraque e à opressão do povo palestiniano em Israel, ao colapso iminente do planeta, provocado pela exploração cega das suas riquezas materiais e à fantochada do Protocolo de Quioto, mas tudo isto, parafraseando José Gil, não se inscreve no nosso real. Tudo isto é percepcionado, mas não apreendido verdadeiramente.
Talvez o problema seja ainda outro: o de, nesta mesma sociedade globalizada, não ter sido ainda conquistada aquela que deveria ser a primeira exigência política actual: a cidadania global. Não se trata apenas de não nos identificarmos com diversas lutas locais, trata-se do não reconhecimento dos direitos de cidadania a largos milhões de pessoas, que continuam a não ter qualquer hipótese de ver, assim, as suas vozes e reivindicações levadas em conta. Arredados que estão deste processo, todos estes se mantém num limbo de (in)existência. Não contam.
Por outro lado, pelo menos dois outros graves problemas assolam todos aqueles para quem a rebelião contra o estado vigente emana: a criação de um modelo alternativo ao actual, o que forçosamente segue a fase de pura oposição; e a corrupção, ou simples possibilidade de continuidade, da organização de luta após a institucionalização.
Não sendo obviamente possível explanar, em tão curto texto, qualquer que fosse a minha hipótese de modelo, resta-me apenas dizer, no que toca a este ponto, que não vislumbro a chamada terceira via. Ao recusar o capitalismo, sou forçado a ver, no socialismo como modo de produção e no comunismo como modelo de sociedade, o caminho a seguir. Não defendo o socialismo do estado soviético, nem qualquer outra forma de poder anti-democrática, mas o simples facto de me sentir pressionado a fazer esta ressalva, embora reconhecendo os erros do passado, mostra a diabolização de que foi vítima a filosofia comunista.
O segundo aspecto que foquei tem índole diferente. A este respeito, cito Mário Tronti, quando diz: “A continuidade da luta é fácil: os trabalhadores só precisam de si próprios e do patrão diante deles. Mas a continuidade da organização é uma coisa rara e complexa a partir do momento da institucionalização: depressa pode passar a ser utilizada pelo capitalismo ou pelo movimento operário ao serviço do capitalismo.”5 Temos, hoje em dia, uma miríade de organizações, desde ONG’s, a partidos políticos, passando por associações estudantis, culturais ou outras, que podemos usar como plataformas de resistência, mas temos também de ter o cuidado para não deixar transformar a revolução em reformismo e a mudança de fundo em mero cuidado paliativo.
Tal como nas lutas sociais do passado, nomeadamente aquando da contestação ao regime disciplinar, há que recusar a normalização imposta, agora sub-repticiamente, pelo poder existente. Recusa esta que deve passar por um verdadeiro momento de criação, aquilo a que Nietzsche chamava “transmutação de valores”.
Por tudo isto, vejo-me forçado a concluir: a participação política dos cidadãos individuais, reunindo-se das mais diversas formas e associando-se, quer pelas suas semelhanças quer pelas suas particularidades, não é apenas desejável, mas sim vital para uma transformação da realidade, que possa constituir uma sociedade em que a base do poder se defina pela expressão das necessidades de todos.
“Na era pós-moderna, enquanto a figura do povo se dissolve, passa a ser o militante a figura que melhor exprime a vida da multidão: é ele o agente da produção biopolítica e da resistência contra o Império.”6
1Mão Morta, As Tetas da Alienação
2Gilles Deleuze e Félix Guattari, Anti-Oedipus
3Gilles Deleuze, Foucault (análise à obra de Michel Foucault)
4Deleuze e Guattari
5Mário Tronti
6António Negri e Michael Hardt, Império
2 comentários:
« Porque se batem os homens pela sua própria servidão tão obstinadamente como se da sua salvação se tratasse? »
Acho que tudo começa quando somos miúdos. Quem tem irmãos mais velhos, deve saber que quando o mais novo faz um disparate e acusa o outro, é este que paga. E assim se aprende a culpar o irmão mais velho. Diz (sabiamente) o Zé Mário que « O papão do anão / É o anão do próprio anão / O pior p'ró anão / É ter um irmão menor / É ter um irmão maior / É ter um irmão...» Acho que se percebe o que ele quer dizer.
Quando caí da bicicleta numa descida e esfarrapei os joelhos, achei que a culpa era da bicicleta. Mas não, foi da gravidade. Às vezes, é difícil atribuir (correctamente) as responsabilidades.
Também tive um bocadinho de culpa, não travei como deve ser. Às vezes, é difícil co-responsabilizarmo-nos. E propormo-nos a resolver.
E no entanto andamos às voltas com o mea culpa desde que a ideia de deus contaminou o nosso esquema mental de competências. Se calhar foi um mau exemplo. Sublinho que não falo de um deus em particular, mas do conceito de entidade omnipotente. Assim acho que já se percebe.
Se calhar soa tudo um bocadinho a moralismo.
Não sei. Mas quero saber, ora.
'hoje em dia tal não se verifica, pese embora não vivermos muito melhor'..mas vivemos,pá!
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