"Flexigurança"
Está ali, simplesmente à mão de semear de todos os que vagueiam pelos corredores entrelaçados, obscuros e incompreensíveis do hospital. Está ali, ninguém sabe muito bem porquê. Está ali porque os cérebros carcomidos pela disputa da sua própria exterminação mantêm algo de ingénuo e único. Surgem processos criativos – junções de ideias – a um ritmo inconstante, ora demente ora orgásmico, para morrerem antes de chegar ao mar como o rio de são Pedro de Moel. São esboços dos esgares das almas perdidas que se misturam com as da sua origem, os mortos e as angústias de um terreno permanentemente mutilado. Será do nosso olhar que nasce esta sede? Voltas e mais voltas, fica tudo no mesmo. Voltas e mais voltas, fica tudo, mesmo mesmo tudo assim, estático, como se o que se tivesse passado fora apenas um retrato de um louco – como se esses houvessem! – e de nós resta-nos o passar por ali, onde o mundo acaba e começa, onde as paredes são escuras… Vêem? É assim que acontece. No curto-circuito - da auto percepção das redes que atravessam corpos calosos, hipocampos e interligam hemisférios - que se dá naquele ponto preciso do nosso córtex pré-frontal, nasce a imagem de que também pudemos escrever. Na orgia dos nossos corpos enfastiados, das nossas mãos desengonçadas, da nossa boca empastada com tanto empastamento, dos nossos olhos cegos e das nossas pernas e genitais o horror de se atingir o âmago do vazio, ficamos assim, parados a olhar o vácuo e outras vezes com a caneta na mão, a escrever.
Liberté, Egalité et Fraternité ou la mort! – Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Valores muito en vogue por altura da Revolução Francesa, parecem ter-se tornado demodés – ou então como se justifica que existam ainda, na actualidade, movimentos e forças que se manifestam contra a dignidade ou mesmo legalidade da idiossincrasia? E entenda-se, a Igualdade de Napoleão representa a unidade da diversidade.
Da hierarquização social e dos seus princípios (e meios e fins), até aos conceitos de pecado e crime, passando pela polémica desencadeada por uma obra que retrospectivamente pode ser considerada avant-garde. Estas situações têm em comum a expressão de imaginários colectivos ou mentalidades individuais dogmáticas, ensimesmadas, redundantes.
De tempos a tempos, o direito à diferença é reclamado. Acontece que as próprias diferenças são diferentes entre si. Quer isto dizer que enquanto uma das partes é politicamente correcta, moralmente aceite e socialmente estabelecida, a outra pode ser o contrário de tudo isso. Falta questionar os fundamentos políticos, os decoros morais e as convenções sociais. Ou acreditaram no Poema em Linha Recta?
Há, geralmente e em particular, uma resposta directa que não inibe a incerteza filosófica e o debate intelectual nem ignora as evidências científicas. A outra é a negação de tudo isto, a penalização de uma opção cujas motivações individuais poderão ser discutidas ad æternum sem uma resolução conclusiva, mas que exige uma concretização em tempo real e útil.
Vive la Différence...
A fazer a tabuada, um dia, descobriste a resposta para todos os problemas da vida.
Nada mais vulgar.
Estranho seria que gastasses uma vida de estudo, observação e pensamento sobre o mundo, que passases anos de isolamento e escrita, que te afundasses no entendimento da arte desde as suas origens, na compreensão química de todos os fenómenos do corpo, que fosses para a rua de gatas olhar as pessoas, ou que te sentasses na almofada da sala a olhar para ti, meses, anos, uma vida. Invulgar seria fazer tudo isso para observar de soslaio uma nesga de resposta às tuas perguntas sobre o universo.
Já no final de um discurso extremamente
grande homem de Estado engasgado
com uma bela frase oca
escorrega
e desamparado com a boca escancarada
sem fôlego
mostra os dentes
e a cárie dentária dos seus pacíficos raciocínios
deixa exposto o nervo da guerra:
a delicada questão do dinheiro.
Jacques Prévert, Discurso sobre a paz
"(...)Quando vocês me conheceram eu não dava sequer por vós, meio assustado ainda com a vida... Agora já muito pouco me assusta, ia dizer quase nada. Por isso abro mais vezes os olhos para vós e chego a pensar que me escutam. Foi tudo tão rápido embora eu goste de velocidades!!! E no meio de duas pessoas que se encontram como no meio de alguém que se encontra a si próprio há sempre um espaço qualquer que nem por poder ser muito pequeno deixa por isso de ser muito importante. Tão importante que se não existisse não havia o Mundo. Tenho pena de vos deixar assim... Mas não é o hesitar que faz o êxito. E muito menos o ser de tão longe. tenho-vos sempre na lembrança."
Mário Botas
para o Diogo,
"Nem mesmo a forma mais livre e progressiva do Estado burguês, a república democrática, elimina seja de que forma for este facto, mas modifica-lhe somente o aspecto (ligação do governo com a bolsa, corrupção directa e indirecta dos funcionários da imprensa, etc). O Socialismo, levando à supressão das classes, conduz por isso mesmo à supressão do Estado."
"O primeiro acto no qual o Estado aparece realmente como representante de toda a sociedade - a tomada de posse dos meios de produção em nome da sociedade - é simultaneamente o seu último acto como Estado. A intervenção de um poder de estado nas relações sociais torna-se supérflua um sector após outro, e adormece então naturalmente. O Estado não é abolido, extingue-se."
Friedrich Engels - "A origem da família, da propriedade privada e do estado" e "Anti-Duhring"
"Santa Apolónia arrotava magotes de gente
Do seu pobre ventre inchado,
sujo e decadente
Quando Amélia desceu da carruagem dura e pegajosa
Com o coração danificado e a cabeça em polvorosa
Na mala o frasco de "Bien-Être" mal vedado
E o caderno dos desabafos todo ensopado
Amélia apresentava todos os sintomas de quem se dirige
Ao lado errado da noite
Para trás ficaram uma mãe chorosa e o pai embriagado
Amélia encontrou Toni numa velha leitaria
Entre as bolas de Berlim com creme e o Sol que arrefecia
Ele falou-lhe de um presente bom e de um futuro emocionante
E escondeu-lhe tudo o que pudesse parecer decepcionante
Mais tarde, no quarto da pensão, chamou-lhe sua mulher
Seria ele a orientar o negócio de aluguer
Toni tinha todas as qualidades para ser um rei
No lado errado da noite
Jonas está agarrado ao seu saxofone