domingo, junho 25

Quem és tu, romeiro?

" Quando o conto existe somente na tradição oral, é em grande escala o inconsciente do narrador que determina qual a história que ele vai narrar, bem como aquilo de que ele se recorda. Procedendo assim, ele é motivado não só pelos seus sentimentos conscientes e inconscientes pela história, mas também pela natureza do seu envolvimento emocional com a criança a que ele se dirige. "

in PSICANÁLISE DOS CONTOS DE FADAS, Bruno Bettelheim

As Artimanhas de Modê-Ali

Ontem, pela primeira vez na vida (se descontarmos aquelas peças de escola para os papás verem), participei numa peça de teatro. Assim, de repente e sem ensaios, fui chamado ao palco, com uma dose de maldade familiar da minha irmã (ainda que disfarçada pelas barbas falsas), que desconfiada dos poderes (ou artimanhas...) de Modê-Ali, pediu-lhe que fizesse desaparecer este rapaz.
E então, junto ao carro velho que serve de carro-mágico, de transportador de mercadorias e de ilusão de tapete voador , fui feito desaparecer por artes bastante óbvias e cómicas.
Roxo de vergonha, lá cumpri o meu papel, com direito a palmas e tudo. Mas, falando do importante, As Artimanhas de Modê - Ali são um conto delicioso, com um humor que atinge os comerciantes, os crédulos, os ambiciosos, os poderosos e, imagine-se!, a GNR.
Com a lógica do te-atrito a imperar, onde tudo e todos são actores (desde o carro, a cordas, a roupas...), passando pela política feita de maneira matreira e acabando nos actores elásticos (ou plásticos), este teatro de rua animou da melhor maneira a tarde na esplanada onde costumo estudar. E além disso, foi a minha estreia teatral.
É mesmo a não perder (por exemplo, no Guadiana Fest, de 7 a 9 de Julho).

quarta-feira, junho 21

Urbanus I


" era uma cidade de que não me lembro e era na cidade um quarto e era no quarto a noite toda.

É na cidade que existe que existe a cidade que não existe. é na cidade que não existe que nós existimos e nos encontramos porque só nos encontramos não na realidade que temos sim na que acreditamos. porque não somos senão ficção uma miragem na cidade habitada.

a cidade não existia. só ele sabia que era uma miragem sua no deserto.

a sua solidão tem o tamanho da cidade e, como a cidade, não pára de crescer.

dobrava as esquinas adivinhando o sítio onde acabava por nunca te encontrar
(...)
instantâneo: o homem naquela janela e a mulher naquele automóvel: todos os dias nunca se encontram.

1.um dia deixou de habitar a cidade e passou a ser passageiro dela.
2.passava pela cidade como pelo trailer de um filme nunca realizado

roteiro s.m. descrição pormenorizada de uma viagem; itinerário (...) designação brasileira para guião de cinema.
O único roteiro fiel a uma cidade é o acaso."

Nuno Artur Silva

segunda-feira, junho 19

Viajantes nocturnos no Norte do Uganda

"No Norte do Uganda, aproximadamente 30 000 crianças fogem de casa a meio da noite e partem em direcção a áreas urbanas e campos de acolhimento.
O fenómeno dos "viajantes nocturnos" começou em 2003 como tentativa de escapar aos ataques e raptos do Lord's Resistence Army (LRA) que abalam o Norte do país desde 1986 sob o comando de Joseph Kony. Este grupo armado tem atacado e raptado civis, queimado aldeias, escolas e hospitais, e mutilado civis em actos de violência extrema. As crianças têm sofrido desproporcionalmente com este conflito, sendo que mais de 25 000 já foram raptadas pelo LRA para servirem como soldados ou escravos sexuais, e muitas delas foram assassinadas."
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Amnistia Internacional - Secção Portuguesa
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O Comité Para os Direitos das Crianças da ONU referiu nas suas observações finais do segundo relatório sobre o caso Uganda a particular atenção que se deve dedicar à protecção das crianças, especialmente ao fenómeno dos "viajantes nocturnos" e melhorar o apoio aos estabelecimentos que os acolhem.
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Contactem a Amnistia Internacional, se não querem ficar de braços cruzados. Existe uma Rede de Acções Urgentes a que qualquer um se pode juntar. Só tem de ter a coragem de dar o nome para se manifestar contra este tipo de atrocidades. Podemos pensar que é perigoso metermo-nos com os carrascos e dar o nosso nome, mesmo protegidos no nosso portugalzinho. Mas a coragem de o dar é a diferença necessária para que algo mude.

quinta-feira, junho 15

Divino Marquês

Era uma vez, há muitos, muitos anos, um velho Marquês, a quem os seus pares chamavam divino, o Divino Marquês. Ora este Marquês, apesar de conhecido em todo reino pela violência com que afrontava a tirania moral do seu tempo, passeando um dia por Braga «a idólatra, o seu esplendor», ficou hospedado em casa da Sra. de Noronha e Vaz, uma burguesa beata e alcoviteira, mas para quem um Marquês, por mal afamado que fosse, oh oh... era sempre um Marquês!

A Sra. de Noronha e Vaz tinha uma filha, bela e prendada donzela na candura das suas dezoito primaveras, entregue aos cuidados espirituais da madre superiora do Convento das Carmelitas, a quem confiara uma educação casta e temente a Deus. No entanto, iludindo a confiança em si depositada, a madre superiora, iniciada ainda noviça nos prazeres da carne pelo Divino Marquês, há muito que vinha incutindo em Clotilde, assim se chamava a menina de Noronha e Vaz, os desejos mais desbragados. Foi pois sem surpresa, e até com bastante satisfação, que quando correu a notícia da presença do Divino na cidade, acolheu as súplicas da sua educanda para que tão nobre personagem lhe fosse apresentado. Ciente de que tal não desagradaria ao Marquês e orgulhosa dos ensinamentos ministrados a Clotilde, a madre superiora tratou de, sem mais delongas, lhes aprontar um encontro.

Entretanto, a Sra. de Noronha e Vaz, jubilante por albergar em seus domínios tão ilustre membro da aristocracia, iniciara preparativos para uma grande festa em sua honra que, a pretexto de o apresentar à sociedade bracarense, se revelava a ocasião propícia para ela própria se mostrar influente e bem relacionada. E ademais, não menosprezando a fama que sempre o acompanhava, o evento até podia proporcionar excelentes deixas à sua carente alcovitice. Foi pois assim, envolta nestes pensamentos e disposta a nada perder, que, chegado o dia da grande festa, se armou de todos os cuidados para discretamente, enquanto simulava instruções a dar aos criados, observar o galante Marquês e a forma despudorada como as convidadas, das mais insuspeitas, descobriam em qualquer futilidade motivo para dele se aproximarem e entabularem conversa.

Como as horas fossem passando e do comportamento dos presentes não emanasse alteração significativa, a Sra. de Noronha e Vaz, desalentada com um enredo tão pouco substancial, deixou-se tomar por intensa modorra, o que levou os convivas a despedirem-se e o Marquês a recolher aos seus aposentos. Alarmada com o que provocara, achou por bem apresentar imediatas desculpas do sucedido ao seu hóspede e, com esse fito, dirigiu-se apressadamente à ala norte do palácio, onde o aposentara por ser a mais afastada das serventias e a que melhor preservava a integridade das suas libações nocturnas. Qual não foi, porém, o seu espanto, quando chegada à antecâmara do Marquês, que julgava só, lhe pareceu ouvir o que juraria serem vozes femininas. Disposta a esclarecer a singular ocorrência, aproximou-se cautelosamente da porta e, juntando um olho ao orifício da fechadura, espreitou para o interior do quarto, não conseguindo abafar, quase de seguida, um grito de espanto. É que esparramada no leito do Divino, quase irreconhecível sem o costumeiro hábito a compor-lhe a silhueta, entreviu a madre superiora, entregue a práticas muito pouco consentâneas com a sua condição de amparo espiritual da cristandade.

- Quem vem lá? - perguntou a inocente voz de Clotilde. A Sra. de Noronha e Vaz, ainda mal refeita do que acabara de observar, ao ouvir a voz da sua amantíssima filha, teve um estremecimento e, lívida de desespero, tombou para dentro do quarto.
- Olha, olha: é a senhora minha mãe! - exclamou, jocosa, Clotilde - Vem certamente juntar-se a nós e connosco partilhar as terrenas delícias que de si tão arredadas têm andado - acrescentou, preversa, para os seus companheiros de alcova.
- Clotilde! Minha filha! Não posso crer no que os olhos me mostram! - murmurou, em estado de choque, a Sra. de Noronha e Vaz - Dizei-me, dizei-me que não é verdade! Que tudo não passa de um mal entendido, de uma torpe ilusão do mafarrico!
- Senhora minha mãe: pretendeis negar a realidade, como aliás sempre negásteis a vida, mas não o consentirei. Olhai! Olhai bem o que faço com este belo sexo que tanto gozo me dá! Vêde! Vêde bem, para que estas imagens jamais vos abandonem a retina! - atalhou desafiadoramente Clotilde. E, dizendo isto, sentou-se sobre o Marquês que a esperava de mastro garbosamente desfraldado.
- Não, não é verdade! Não reconheço em vós a minha Clotilde, que tão castamente eduquei, balbuciou em pranto a Sra. de Noronha e Vaz e, virando-se para a madre superiora - É a vós! É a vós que eu devo esta afronta de ver a minha inocente filha transformada na viciosa mais ordinária! Mas vós... vós haveis de ma pagar!
- Senhora minha mãe! - interveio, do seu poleiro, Clotilde. Estou a ver que aqui viésteis para nos tentar causar aflição. Sabei, no entanto, que não o conseguireis. E de castigo, pela ameaça que acabais de proferir, irei em vós executar aquilo que, há momentos, o Divino me contou: vou cozer-vos o sexo!
- Não, não... que horror! Não é possível! Gerei um monstro! Um monstro! A minha própria filha! - gritou, em pânico, a Sra. de Noronha e Vaz.
- Agarrem-na! - ordenou Clotilde.

Adolfo Luxúria Canibal/Mão Morta

segunda-feira, junho 12

Tentativa Breve

Sabe a azedo, a mediocridade
A mortalha que ninguem fuma
Que envolve a vida doente
De quem já nasce sem ter cura.

Vivem outros, agora e depois
Mas não os mesmos que foram
Porque o tempo não é memória
Quando não existem pelo menos dois.

E quando já não houver esperança
Deste morrer ou tentar
Que no sonho de uma criança
Ganhe sentido outro lugar.

Leonel Monteiro

Preternatural Philosophy .1

(resumo baseado no artigo de Lorraine Daston)
por Flávia Polido e Teresa Martins (de verdade, de verdade!)
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«But what are things?
Nothing, as we shall abundantly see, but special groups of sensible qualities, which happen practically or aesthetically to interest us, to which we therefore give substantive names, and which we exalt to this exclusive status of independence and dignity.
But in itself, apart from my interest, a particular dust wreath on a windy day is just as much of an individual thing, and just as much or as little deserves an individual name, as my own body does.»
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William James, Principles of Psychology (1890)
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Introdução: Uma Ciência de Anomalias
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A questão colocada por William James enquadra-se tanto na análise da natureza dos objectos da consciência como na determinação da natureza filosófica dos objectos científicos. Que aspectos ontológicos, epistemológicos, metodológicos, funcionais, simbólicos e/ou estéticos definem um objecto (ex. nascimentos monstruosos, valências dos electrões, etc.) como científico?
Segundo Aristóteles, a propriedade fundamental do objecto científico é a regularidade, que deve ser não só universal como demonstrável, ie, a reprodução de uma sequência de factores causais permitirá desencadear o fenómeno, sendo este, portanto, previsível. Esta concepção persistiu após a decadência do Aristotelismo.
No entanto, a regularidade raramente é suficiente para distinguir os objectos científicos dos objectos quotidianos. A selecção é complexificada por atributos que incluem, entre outros, a possibilidade de quantificar, manipular e explicar, a utilidade e a relevância cultural.
O que significa “preternatural”?Não sendo a regularidade uma condição suficiente para a definição do objecto científico, será uma característica obrigatória? O objectivo deste artigo é questionar a natureza filosófica do objecto científico através de um contra-exemplo histórico: a focalização da atenção dos filósofos naturais em fenómenos anómalos, no contexto de finais do século XVI e século XVII. Estes fenómenos eram designados, na linguagem da época, praeter naturam, “para além da natureza”, representando divergências da regularidade (ex. aparecimento de três sóis no céu, nascimento de gémeos siameses, etc.). Ou seja, tudo o que acontece extraordinariamente mas não menos naturalmente.
Assim, a filosofia preternatural distingue claramente os seus objectos, por mais maravilhosos e incríveis que possam parecer, do miraculoso e do sobrenatural, tendo como base a premissa inflexível de que todas as anomalias poderiam ser, em última análise, explicadas por causas naturais.
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O desafio da filosofia preternatural à filosofia natural inclui dois aspectos:
1) A singularidade dos seus objectos, nem regulares nem demonstráveis, exclui-os do domínio dos fenómenos que requerem explicação filosófica, uma vez que a filosofia natural rejeita a possibilidade de uma ciência do aleatório, embora não negue a existência de excepções ao curso normal da natureza.
2) Porque desapareceu a filosofia preternatural? A filosofia preternatural expande o leque de explicações possíveis, introduzindo novos tipos de causas (ex. influência astrais, a imaginação, etc.), excluindo no entanto o demoníaco e o divino.
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É também um objectivo deste ensaio explorar como e por que emergiram os objectos da filosofia preternatural como passíveis de estudo científico em meados do séc. XVI, dissolvendo-se de novo como excentricidades e anomalias ignoradas pelos cientistas do séc. XVII e seguintes. Os objectos preternaturais continuaram a existir, mas deixaram de ser considerados objectos científicos. Esta desintegração da filosofia preternatural é atribuída à dissociação dos seus princípios unificadores - ontologia, epistemologia e sensibilidade.
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PRÓXIMO EPISÓDIO...
Um Inventário do Não Natural

sábado, junho 10

Mundialices 1. Jogo Inaugural

Itália`90: Argentina - Camarões. O meu pai, sempre preocupado com a minha educação, explica-me o que se vai passar. Isto acontece de quatro em quatro anos e é o torneio de futebol mais importante do mundo. O primeiro jogo é sempre o Campeão do Mundo contra alguém. A ocasião prometia e eu até parei de brincar com os subbuteos (para quem não sabe, são uns bonecos pequenos de futebol pequenos e joga-se dando-lhes com o dedo, tipo berlinde. É giro.). Eu nem sabia - aos 6 anos - que havia um país chamado Camarões e imaginei-os com um equipamento da cor dos animais seus homónimos. Mas sabia que havia um tal de Maradona do outro lado. E o meu pai, do alto da sua sapiência, disse-me que a Argentina devia meter três ou quatro nas calmas. Um zero para o país que jogava de camisolas verdes e calções vermelhos (e não da cor dos camarões) e a autoridade paternal posta em causa.

EUA`94: Alemanha - Bolívia. Não achei muita piada ao facto do Mundial ser nos States. Não, ainda não tinha consciência política, mas os jogos davam tarde. Apesar das responsabilidades académicas serem bastante reduzidas aos 10 anos, a autoridade da minha mãe foi uma barreira chata que me impediu de ver alguns jogos na fase de grupos (felizmente fiquei de férias cedo). Avanços diplomáticos do meu pai interecederam a meu favor conseguindo autorização para ver o primeiro jogo. Houve um estúpido de um boliviano (Etcheverria, se não me falha a memória) que conseguiu levar um cartão vermelho aos 2 minutos. O meu pai explicou-me que não gostava da Alemanha porque antigamente eles tinham tido um regime político mau. E foi a ver a Alemanha ganhar 3-1 (se não me falha novamente a memória...Já lá vão 12 anos, malta) que o meu pai me explicou o que foi o regime nazi.

França`98: Brasil - Escócia. O meu tio não percebe nada de futebol e torceu pela Escócia. Fiquei triste porque o meu Brasil - por quem torço todos os Mundiais - tinha uma equipa tão estranha que precisou de um golo marcado meio com a cabeça meio com o ombro e de um penalty duvidoso para ganhar aos cepos dos escoceses. O meu tio anunciou logo a tragédia que viria a acontecer na final e disse que o Brasil não ia ganhar.

Coreia/Japão 2002: França - Senegal. Mais um Mundial num país esquisito com jogos a horas esquisitas. Sexta feira, 12.30: "Senhora Professora, está aqui a minha auto-avaliação e quero-lhe dizer que não venho a esta nem às duas próximas e últimas aulas porque há jogos do Mundial. Prometo estudar muito para os exames e tentar entrar na faculdade." A pobre senhora ficou demasiado espantada para conseguir contra-argumentar. Eu avisei-a o ano todo que não ia faltar porque sabia que em Junho ia ter montes de jogos a ocupar-me a agenda. Ela achou que eu estava a gozar. É quase uma impossibilidade física explicar a alguém que é possível vibrar com os poemas de Pessoa e dar gargalhadas com o golo que o Senegal marcou aos franceses sem ser considerado doente psiquiátrico.

Alemanha 2006: A minha empregada fez qualquer coisa esquisita à box da T_ _ _ _o (não à publicidade) e perdi o Alemanha - Costa Rica. Confesso que ainda não recuperei do choque.

sexta-feira, junho 9

“Como sei que não tenho amigos? É muito simples: descobri-o no dia em que pensei em matar-me para lhes pregar uma boa partida, para os castigar, de certa maneira. Mas castigar quem? Alguns ficariam surpreendidos; ninguém se sentiria castigado. Compreendi que não tinha amigos. De resto, mesmo que os tivesse, não adiantaria nada. Se eu pudesse suicidar--me e ver em seguida a cara deles, então, sim, valeria a pena. Mas a terra é obscura, meu amigo, a madeira espessa, opaca a mortalha. Os olhos da alma, sim, sem dúvida, se há uma alma e se ela tem olhos! Mas aí está, não se sabe ao certo, nunca se sabe ao certo. Senão, haveria uma saída, poderíamos enfim fazer com que nos tomassem a sério. Os homens só se convencem das nossas razões, da nossa sinceridade e da gravidade das nossas penas, com a nossa morte. Enquanto vivos, o nosso caso é duvidoso, não temos direito senão ao seu cepticismo. Se houvesse, então, uma única certeza de podermos gozar o espectáculo, valeria a pena provar-lhes o que eles não querem crer e deixá-los pasmados. Mas uma pessoa mata-se e que importa que eles a acreditam ou não? Não estamos presentes para recolher o seu espanto e a sua contrição, aliás efémera, assistir, enfim, segundo o sonho de cada homem, ao nosso próprio funeral. Para deixar de ser duvidoso, é preciso, muita belamente, deixar de ser.

(…)

Ah!, caro amigo, como os homens são pobres de inventiva! Julgam sempre que nos suicidamos por uma razão. Mas podemos muito bem suicidar-nos por duas razões. Não, isso não lhes entra na cabeça. De que serve, então, morrer voluntariamente, sacrificar-nos à ideia que queremos dar de nós mesmos? Uma vez mortos, eles aproveitar-se-ão disso para atribuir ao nosso gesto motivos idiotas ou vulgares. Os mártires, caro amigo, têm de escolher entre serem esquecidos, escarnecidos ou utilizados. Quanto a ser-se compreendido, isso nunca.”

Albert Camus, in A Queda.

O menino do cravo

Os caracóis dourados transformaram-se no corte impecável do director financeiro de uma empresa de distribuição em Londres.
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Diogo Bandeira Freire foi convidado para as comemorações do dia de Portugal. Perguntam-lhe o que sente. Diz-se "surpreendido" (a criança despenteada) mas "honrado" (o cinzento senhor, com vestígios de traquinice nos dentes da frente separados).
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Pôs um cravo na espingarda, o menino que não sabia porque se punham flores nos canos daquelas coisas barulhentas. Agora dá-nos pétalas de uma flor despedaçada quando nos diz que nunca exerceu o seu direito de voto, nem em Portugal, nem em Londres.

quinta-feira, junho 8

Ideia-Íris

E ZÁS-TRÁS-PÁS! – Um avião cai no deserto. Um aviador encontra um menino vestido de azul. E esse menino conta-lhe estórias daquilo que ele, apesar de voar tanto, não viu. E fala-lhe, também, daquilo que é invisivel aos olhos.
E ZING-BOOM! – Um livro cai da estante. Uma mão desocupada pega no livro. Dois olhos vestidos de azul assombram-se com este estranho diálogo que se deixa entrever, por vezes, nos circuitos parietais entre autores, personagens e livros de línguas e épocas diferentes. Eu acho que o Saint-Exupéry andou aos segredinhos com o Tolstoi. Vejam lá o que vos parece.
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« (...) Eu só dispunha de lápis azul; apesar disso, resolvi desenhar a caçada. Depois de esboçar a largos traços um rapaz azul montado num cavalo azul e rodeado de cães azuis, tive um escrúpulo: poder-se-iam desenhar lebres azuis? Corri ao escritório de meu pai para ouvir a sua opinião a esse respeito.
« Estava ocupado a ler; quando lhe perguntei se existiam lebres azuis, respondeu-me sem levantar a cabeça: - Sim, meu filho, sim.
« Voltei ao meu desenho, e tracei uma lebre azul, mas julguei depois necessário transformá-las em arbusto; no entanto, também essa solução não me satisfez e transformei-a numa árvore, a árvore em moinho e o moinho em nuvens e, por último, acabei por riscar de azul de tal modo o papel, que o amarrotei com despeito, e fui-me sentar numa cadeira, a dormitar.»
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Leão Tolstoi, in «A Infância»
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E também acho outra coisa: um arco-íris pensado não precisa de sete cores para ser concretizado. Ou fazer saltar um sorriso de dentro de uma caixa de sapatos. Ou rodopiar para longe em rodas de arame. Ou fazer uma manhã de quinta-feira acordar – estremunhada, despenteada e rezingona – mas promissora. E depois vê-la a desfazer-se, desiludida, num fim de tarde passivo. Mas isto já são tolices de menina. Ainda não gastaram o lápis azul?

Natureza Morta

Crescemos a dizerem que tivemos sorte. Que Portugal até teve uma ditadura leve, com censura leve, com tortura leve, com penas leves, com mortos leves. Uma coisa branda.
Mas tivemos gente presa aos quinze anos e a esperar dez por julgamento. Tivemos torturas de sono, 13 dias e 13 noites vigil, enredado em jogos de isolamento, privação e loucura. Tivemos mãe presas com os seus filhos de colo a serem ameaçadas através das crianças. Tivemos linchamentos de agricultores que de inverno iam à lenha nas herdades, queriam aquecer-se e cozinhar a sua comida.
Tudo isto reduziu-nos a um povo de silênco. Cinzento. Um ruído de fundo apenas.
Querem que esqueçamos. Os ex-agentes da pide viram o seu direito a reforma reconhecido antes dos resistentes anti-fascistas.
E nós cá vamos andando. Não nos esquecemos, não, mas lembramo-nos cada vez menos. A sede da pide transforma-se em condomínio privado e apenas temos uma vaga ideia de que talvez seja a tendência das coisas.
E armas para fazer o que queremos?

terça-feira, junho 6

NÃO resistir SÓ e não só resistir

Este é o título de um CD diferente. Feito sem grandes meios, mas por gente com uma grande vontade de criar algo, quer promover uma reflexão e iniciar uma discussão sobre temas, da universidade e da sociedade para além dela, que nos tocam a todos.

A critíca à "tradição académica" é apenas o ponto de partida: a sociedade de consumo, que se emaranha com a vida estudantil de forma tão promíscua como o faz com tudo o resto; a aceitação acrítica demonstrada pelos estudantes, face à mercantilização do ensino, à precaridade do trabalho e constante perda de direitos; a própria resignação à imposição do que é ou não aceite como arte. Tudo isto se quer pensado. A discussão (que tão pouco interessa ao poder vigente) quer-se acesa.


A criação de alguma coisa de novo, que saia da cultura corrente pronta a con$umir, toda ela um conjunto (nem sequer muito grande) de estereótipos que nos são impostos diariamente como únicas manifestações artísticas possíveis, é sempre de louvar. Quando a isso se alia um óptimo trabalho a nível musical, com bandas que vão do hardcore à electrónica ambiente, e um tratamento gráfico pleno de originalidade, é caso para desejar que todos ouçam/vejam este CD.

sábado, junho 3

Ser poeta é ser mais alto

"... é importante dizer-te, desde já, que a razão principal desta carta está na tentativa de que venhas um dia, hoje mesmo, quem sabe, a ser "poeta".
Desculpa lá. Isto parece uma pretensão demasiado ambiciosa da minha parte, mas insignificante para ti. Penso mesmo que te diz pouco este nome tão pequeno e tão grande. Este nome que pela razão de ser e existir tem feito a glória a morte de muita gente.

(...)


Vou dizer-te que no meu tempo, por esse tempo, nunca soube, então, se a beleza, era assim uma coisa que a gente pudesse ter quase ao alcance das mãos, como é mesmo o sopro duma palavra ou claridade brilhante dum olhar. E muito menos, que basta estar prestes a chover para que tudo o que no envolve seja uma toalha misteriosa e os pensamentos "seres quase mágicos", feitos de espuma e realidade, como quando na praia nos é difícil distinguir o verde e o azul da água."


José - Alberto Marques in Carta a um jovem antes de ser poeta

sexta-feira, junho 2

Primavera de Destroços

Como dizia um dos heterónimos, por outras palavras, é escandalosa a quantidade de génios que andam para aí condenados ao anonimato. Não acham? O comentário de um ilustre desconhecido ao post do R., aquele em que é transcrita a letra de uma "música adolescente" ( sic ) fez-me pensar nisso e noutras coisas. A propósito, não deixei de ficar grata quando alguém (que também permanecerá no anonimato) estabeleceu a correspondência entre aquele diálogo e uma discussão figurada nihilismo-budismo. "Saudade, saudade"...de música adolescente e de ficar horas a olhar para uma mancha na parede. Se calhar é um mecanismo de defesa do ego, daqueles engavetados pelo Freud no extenso inventário de etiquetas para os processos psíquicos. Estaremos a regredir? A personificar os ritos de transgressão que o Amaral Dias identifica com a toxicodependência, a adolescência, Rimbaud e Baudelaire?
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Não vos desilude, às vezes, ver tantos génios em potência com pressa de ver chapéus em elefantes-engolidos-por-cobras? Tanta pressa que acabam diluídos na massa dos anónimos que vêem chapéus.
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Livros infantis...saudade, saudade.

quinta-feira, junho 1

Há uma pintura de Goya na capa.

_ (...) Provocou em mim como que uma vontade de disparatar. Aí tem como uma pessoa sensata, ao abrir a torneira, fica uma louca.

(...)

_ O que pensa o sr. doutor acerca disto?
_ Se eu soubesse! Mas diga-me: no seu entender, o que é que a leva a mudar constantemente, a saltar de experiência em experiência? Se é que você própria se conhece!...


Longo silêncio, à beira da comoção, real ou simulada. O juiz começa a arrepender-se da pergunta.

_ Pois bem, no meu caso...

E novamente Cátia se interrompe.

_ Continue, Cátia, diga.
_ Não adivinha? Adivinhe, sr. inspector.
_ Não sou capaz.
_ Então, sr. inspector, eu conto tudo. é a primeira vez que o faço, perco de vez o pudor. (...)



in O ETERNO EFÉMERO, Urbano Tavares Rodrigues

Questões de género

Retirado de um livro de aforismos comprado ao próprio autor nas ramblas de Barcelona. Uma pequena provocação:

"Las feministas están equivocadas en sus criticas
Veamos, por ejemplo:
la vida,
la suerte,
la felicidad.
la poesía,
la muerte,
la rosa,
la ley,
etc.
Casi todo es femenino.
A nosotros, los hombres,
sólo nos quedan
el poder
y el arbitrio." Eduardo Mazo in "Autorizado a vivir"