segunda-feira, maio 29

Vou escrever pó desumbiga .2

Epístolas
de decadência
de não querer
ser assim

Ter o tédio
do meu tédio
ter este nojo de
mim

Não ter nada que
cale a dor
o desespero sem
sentido
o quotidiano
destruidor
o nada mais
conseguido

Dos que sucumbem
da memória
que não lhes
toque a escória
de quem existe
sem saber
o que é
realmente viver

Do que foi já não
é nada
a não ser a
mágoa de quem
sente
Que aquilo que é
não será nada
depois do ser
permanente


Leonel Monteiro

Vou escrever pó desumbiga

Escrever po blog do desumbiga. O Dali provava que era mais surrealista que os outros porque certo dia deu um pontapé no cú de um cego que pedia ajuda para atravessar uma estrada.
Para te livrares das mulheres engata-as.
Antes maniaco que deprimido.

Hasta,

cumprimentos Guevarianos

Leonel Monteiro, Rei persa e não só

domingo, maio 28

Albas.1 Notícias de deus

Queridas filhas:

Não creio nos filósofos, mas cativou-me sempre a sua audácia de pensar.
É bonito, leiam-nos.
Quanto aos poetas (o pp. foi um deles) sorriam-lhes de longe.
Mas atenção aos grandes músicos, à sua estranha perfeição, à nostalgia que nos invade aos escutá-los.
Quando encontrarem um, não o deixem escapar.
Poderia pensar-se que nos trazem (os músicos) notícias de Deus.
É mais: como Deus não existe, eles têm de forjá-las.


Sebastião Alba, em Albas

quinta-feira, maio 25

"Sensing the tempo"

A propósito de "Evolução é um passinho de cada vez (a olhar para o chão)." - pag 33, Des1biga 11, Hugo Bastos - ou (ok, admito) a partilha (desnecessária) da alegria de encontrar um parágrafo onde se fala de xadrez e futebol!

"The role of time in chess is a complex one. In tactical positions every tempo can have a decisive significance. In situations of strategic manoeuvring the time factor is often less important.
In many kinds of sport there is a concept known as "sense of rhythm". In their best years the football team Dynamo Kiev played to an uneven tempo, first quietly, dealing with their opponent`s vigilance, then sharply increasing their speed."

Alexei Kotov, "Sensing the tempo" in Positional Play

E porque a estratégia são os generais, os planos e as manobras e a táctica são os soldados e a acção propriamente dita, acho que em termos des1bigas estamos bons estrategas - boas ideias, bons planos para a revista e não só - mas com erros na parte táctica. Temos de calcular melhor as variantes (ou não falhar golos) e começar a ter mais calma antes da revista ir para a gráfica. "Sensing the tempo"! Quando o jogo está ganho há que fazer o adversário correr atrás da bola! (a metáfora não funcionou, mas a ideia era dizer que se temos a revista quase pronta não vale a pena apressarmos a coisa por causa do entusiasmo. Detesto explicar as metáforas.)
Já falámos sobre isto, mas em quantos mais sítios ficar escrito, melhor. E sempre é uma maneira de eu justificar este post.
Entretanto - mantendo a metáfora desportiva - gozemos o bom ambiente da equipa.

"Evolução é um passinho de cada vez (a olhar para o chão)."

terça-feira, maio 23

Sub-Valorizar

Em jeito de comentário ao texto «A Morte Antes do Morno», publicado no nosso número 11.
...
«Os detractores do casamento são representados por quase todos os filósofos e literatos da Antiguidade, a começar em Platão, que no Banquete distingue uma Afrodite e um Eros celestiais de uma Afrodite e um Eros comuns. Estes últimos Deuses presidiriam às relações correntes e sub-valorizadas entre homens e mulheres. Os primeiros às relações homossexuais entre homens. Os casais, como já foi apontado, são para a maioria dos Antigos e para muitos Modernos resultantes de necessidades económicas, procriativas, sociais, mais do que destinados a fornecer satisfações afectivas ou sexuais. Com a poesia dos trovadores (Tristão e Isolda), com a Renascença (Romeu e Julieta, poesia de Camões), com o Romantismo, em todos os momentos em que o valor da mulher é exaltado há uma exaltação paralela do amor-paixão entre os dois sexos.»
Pedro Luzes, «Psicologia do Casal: Realidade e Fantasia»
in Revista Portuguesa de Psicanálise, 3 - Julho de 1986

segunda-feira, maio 22

Papoilas .04

Não da Lua
ou
Small Time Crooks
...
« Vivemos numa sociedade promocional. Não que o trânsito de um para outro escalão económico (e de prestigio social) seja efectivamente muito fácil, mas o apelo da publicidade, através de todos os seus veículos, à ascensão hierárquica é constante, é quase a tónica da década de 70. Os anúncios de automóveis, de papel para forrar paredes, de perfumes, disto, daquilo, daqueloutro, dão todos eles à manivela do luxo, da «snobeira», da «classe»... Há lojas que se chamam «Rico», «Aristocrata», «Rubi», etc., etc., e outras surgem, surgirão, que bem poderão chamar-se, se é que não existem, «Categoria», «Nível», «Élite», «Requinte», etc.
...
« Subsiste, entretanto, a outra face, não da Lua, mas da cidade, as regueiras da sujeza, os coros da impotência, o corpo-a-corpo, suado e violento, com o quotidiano negativo - e até a abdicação, e as máquinas humanas que, a seu pesar, expelem o homem para a zona zero. »
...
Urbano Tavares Rodrigues, «As Eternidades»
in Viagem à União Soviética e Outras Páginas

domingo, maio 21

Gumes

Vamos lá então juntos recitar
Este belo acordo que nos vai ligar
Juro pela vida nunca me trair
Juro pela vida sempre resistir
Juro pela vida nunca obedecer
A qualquer vontade fora do meu ser
Juro pela vida sempre acreditar
No poder sagrado que nos faz amar
Juro pela vida sempre contrapor
O valor da festa contra o tédio em vigor
Juro pela vida todo me entregar
À paixão do jogo do corpo e do criar
Radical radical radical
Hei-de ser no agir no pensar
Só na luta há festa só na luta há gozo
Para ter um destino aventuroso
Eis o Graal nosso Graal
O mundo é nosso vamos a ele
O mundo é nosso não há que ter medo
O mundo é nosso vamos com ele brincar
Mão Morta - Nus

quinta-feira, maio 18

Autores

O Des1biga número 11 não tinha todos os seus textos assinados. As assinaturas que faltam seguem neste post. Prémios literários ou críticas altamente desturtivas poderão, finalmente, ter os destinatários certos.

TEMA
Sem Título - Cristovão Figueiredo
E / RE / Involução - Rita Freitas (o texto da esquerda); Teresa Martins (o da direita)
Revolução - Pedro Pereira

MADEIXAS DO BICHO
Sequelas - Gui
O Grito de Epicuro - Teresa Martins
A Morte Antes do Morno - Manuel Neves

3 EM 3
Claques - Dia Mau - Manuel Neves
As Belas e o Monstro - Hugo Bastos
O Sonho - Helena Lopes

LEVANTADOS DO CHÃO
Cocktail Molotov - André Traça

TRANSMISSÃO ORAL
Entrevista a Pedro Monteiro - Manuel Neves

JANELA DE EXPRESSÃO
O Jardim das Delícias - Gonçalo Augusto Figueiredo
Espelho - Cláudia Penedo
Indiferença - Helena Machado
(In)expressões - Ingrid K.
A Promessa - Rolando Sujeito (e não Ingrid K.)
Acendi a Vontade de Escrever - Émilie
A História de uma Menina Irritada com o Mundo - Helena Machado
O Truque da Literatura Existencialista - Ingrid K.

BABILÓNIA
Climax - Helena Machado
A Clockwork Orange - Manuel Neves
Editors - The Back Room - Diana Freitas da Silva

PEREGRINAÇÃO
Marrocos - Pedro Pereira

terça-feira, maio 16

Des - ultra: foras da lei

"Vou falar-vos dum curioso personagem: Jeremias, o fora-da-lei"

E de outro: Denilson, um extremo esquerdo à antiga. Um daqueles artistas com pouco sentido de sociedade (leia-se: equipa). Amava a brincadeira de fintar defesas e voltar para trás para os fintar outra vez, quando tinha um colega sozinho na área.

Há quem veja em Jeremias apenas mais uma vítima da sociedade
Muito embora ele tenha a esse respeito uma opinião bem particular
É que enquanto um criminoso tem uma certa tendência natural para ser vitimado
Jeremias nunca encontrou razões para se culpar

Denilson estava-se a borrifar. Desesperava colegas de equipa, treinador, público (o dele e o contrário) e os adversários. Como se jogasse outro jogo, que não aquele enfadonho "marcar mais golos que os outros".

Foragido por amor ao que é belo e por vocação

A Deni encantava-lhe o futebol de rua. A finta, o malabarismo, o riso.

Gosta da forma como os homens respeitáveis se engasgam quando falam dele
E da forma como as mulheres murmuram: fora-da-lei

Estava em Sevilha - onde o via jogar - e fez uma finta tal que a bancada largou um Olé! como se Deni fosse um toureiro. Humilhado, o defesa agarrou-o. Cartão amarelo. Como um verdadeiro fora da lei, com o jogo parado, Denilson começou a dar toques sem deixar cair a bola. O defesa vê naquilo uma humilhação e tenta acabar com a brincadeira chutando a bola para longe. Mas Denilson passou-lhe a bola por cima da cabeça e o seu remate foi um gesto rídiculo, de quem chuta no ar. Oléééééééééé! O defesa não aguentou e tentou outra vez. A bola novamente por cima da cabeça dele, sem nunca cair no chão e com o jogo parado. O árbitro dá o segundo amarelo ao defesa e rua.
O público corou de espanto com a proeza e entre gargalhadas exclamou fora da lei.

Não estando disposto a esperar que a humanidade venha alguma vez a ser melhor
Jeremias escolheu o seu lugar do lado de fora

Denilson cansou-se das tácticas, dos treinadores que preferem o trabalho à arte. E eu, que o vi jogar numa equipa com a qual simpatizo muito, amei isso. Do lado de fora.

(Confesso que detesto esse tipo de artistas no Benfica. Que raio de pai prefere a filha casada com um fora da lei do que com um tipo sério com um bom trabalho?!)

Jeremias, o Fora da Lei - Jorge Palma 1985

Os punhos

Pela melodia da NAIFA, podemos rir-nos. De nós, dos outros, de quem é extremista em certas arestas de personalidade.

Porque há bons e vilões em todo o lado (seja a definição de cada uma delas qual for), enquanto apartidária, se me permitem,

SENORITAS

naquele porto os metalómanos barcos
esmagam a paisagem
de energia brutal, parada.

num barco soviético
o marinheiro põe o punho a meio gás
como o comunismo enjeitado na sua terra.

disse-lhe que portugal ainda tinha muitos comunistas
mas o que ele queria saber era onde havia senoritas
que o levassem a dar uma volta.

(poema de Tiago Gomes)

The Juniper Tree


The Juniper Tree
a dark tale of witchcraft and mysticism based on a tale from the brothers Grimm
writer/director Nietzchka Keene, 1990, 2002
starring Bjork
After their mother is burned at the stake for practising witchcraft, Margit (BJORK) and her elder sister, Katla, flee across Iceland’s rugged terrain. Reaching a remote farm, Katla casts a seductive spell on its handsome young widower, Johann, and soon the two are wed, to the dismay of his suspicious young son, Jonas. As tensions mount, Margit is drawn further into the spiritual world where she seeks the power to save Jonas form Katla’s wrath. A brilliant debut performance by post-modern songstress, Bjork.

Aqui há quem ainda saiba fazer feitiços de amor.
Pinta-se a preto e branco um mundo feito de paralelipípedos de pedra numa paisagem natural áspera, onde se movem uma bruxa, a irmã inocente, o homem seduzido, o filho angelicalmente perspicaz dele.
Margit crê que ele é um pássaro. Os corvos, muitos e pretos, juntavam-se numa conspurcada reunião no solo que cobria a sua mãe morta. Crê que ele é um pássaro empoleirado solitariamente na cruz de madeira coroada de flores que havia erguido sobre aquela figura que teimava não esquecer. Era ali que o seu dedo tocava para a eternidade a terra onde todos regressamos, por fim_ era sensato que por essa mesma razão ele lá permanecesse.
Já a sua própria mãe, crê ser aquela visão que tem da senhora que se senta, mãos no regaço, num monte de pedras gigantes. Ou aquela que a segue por trás da cascata, e a afaga com uma festa maternal no rosto.
E depois há aquela passagem pela adolescência (rapariga, porque perguntas a uma mulher de maus feitiços como é estar com um homem?): porque lhe pergunta, a essa hisurta mulher tudo-menos-fêmea? O homem que teve foi por feitiço, e o filho não conquistou porque não há magia que transforme em simpatia a empatia das crianças essencial à aceitação dos adultos.
Margit_agora_mulher que sabe de magia, como sabe falar com crianças e sabe da proximidade maternal, gostava de a ter conhecido.

segunda-feira, maio 15

Militâncias

Vivemos numa época onde, cada vez mais, nos apercebemos de como tudo vai mal: de como, cada vez mais, crianças morrem à fome, enquanto se enterram toneladas de alimentos, de forma a que, mantendo a escassez, se consigam regular os preços; de como, cada vez mais, nos fazem viver em estado de guerra permanente, (dizem eles) para manter a paz; de como, cada vez mais, o “trabalho é um direito transmutado em dever”1, obrigando-nos a seguir a filosofia do absurdo trabalha-consome-morre.
Vivemos numa época onde, apesar das condições objectivas de miséria física e psíquica que rodeiam a nossa existência, parece não existir forma de resistir e de lutar contra elas, pela criação de um mundo novo, verdadeiramente diferente e que atenda, por fim, às necessidades de todos. Aliás, e como dizem Gilles Deleuze e Félix Guattari “o problema fundamental da filosofia política continua a ser aquele que Espinosa viu tão claramente (e que Wilhem Reich redescobriu): Porque se batem os homens pela sua própria servidão tão obstinadamente como se da sua salvação se tratasse?”2
Talvez o problema se centre no facto de, neste mundo “globalizado”, não ser possível identificar a fonte dos nossos males, o inimigo contra o qual devemos direccionar a nossa resistência e luta, dissipando-se, assim, a nossa força de revolta. E aqui é de sobremaneira importante a diferença de atitude da actual sociedade de controlo, face aos métodos da anterior sociedade disciplinadora3. Na sociedade actual, existe uma tendência para abandonar os tradicionais meios de repressão, traduzidos classicamente pelas instituições disciplinares, de que são exemplo a fábrica, o asilo, a escola, a prisão, utilizando, ao seu invés, redes comunicacionais e sistemas de informação que manipulam os indivíduos, incutindo-lhes os padrões e comportamentos que serão aceites como normais e desejáveis. Assim, e exemplificando redutoramente com um caso nacional: enquanto que, durante a ditadura fascista de Salazar, existia união entre o povo, na luta contra um inimigo comum, que dispunha de meios repressivos concretos e explícitos (a censura, a PIDE, o Tarrafal), hoje em dia tal não se verifica, pese embora não vivermos muito melhor, tendo em conta todos os factos que referi acima.
Talvez o problema seja o da não identificação: apesar de sermos cidadãos globalizados, não apreendemos os problemas dos cidadãos de outros grupos sociais (cidadãos de outro género biológico, outras nacionalidades, outras etnias, outras classes profissionais) como nossos e nada fazemos para que os nossos esforços se juntem aos deles. Mas, não obstante, “não temos falta de comunicação, mas comunicação em excesso. Pelo contrário: é criação o que nos falta. O que nos falta é resistência ao presente.”4. Assistimos pela televisão aos confrontos em Paris (primeiro de imigrantes, depois de estudantes e sindicatos) e às manifestações de imigrantes ilegais nos EUA do último 1º de Maio, ao terrorismo de estado da guerra do Iraque e à opressão do povo palestiniano em Israel, ao colapso iminente do planeta, provocado pela exploração cega das suas riquezas materiais e à fantochada do Protocolo de Quioto, mas tudo isto, parafraseando José Gil, não se inscreve no nosso real. Tudo isto é percepcionado, mas não apreendido verdadeiramente.
Talvez o problema seja ainda outro: o de, nesta mesma sociedade globalizada, não ter sido ainda conquistada aquela que deveria ser a primeira exigência política actual: a cidadania global. Não se trata apenas de não nos identificarmos com diversas lutas locais, trata-se do não reconhecimento dos direitos de cidadania a largos milhões de pessoas, que continuam a não ter qualquer hipótese de ver, assim, as suas vozes e reivindicações levadas em conta. Arredados que estão deste processo, todos estes se mantém num limbo de (in)existência. Não contam.
Por outro lado, pelo menos dois outros graves problemas assolam todos aqueles para quem a rebelião contra o estado vigente emana: a criação de um modelo alternativo ao actual, o que forçosamente segue a fase de pura oposição; e a corrupção, ou simples possibilidade de continuidade, da organização de luta após a institucionalização.
Não sendo obviamente possível explanar, em tão curto texto, qualquer que fosse a minha hipótese de modelo, resta-me apenas dizer, no que toca a este ponto, que não vislumbro a chamada terceira via. Ao recusar o capitalismo, sou forçado a ver, no socialismo como modo de produção e no comunismo como modelo de sociedade, o caminho a seguir. Não defendo o socialismo do estado soviético, nem qualquer outra forma de poder anti-democrática, mas o simples facto de me sentir pressionado a fazer esta ressalva, embora reconhecendo os erros do passado, mostra a diabolização de que foi vítima a filosofia comunista.
O segundo aspecto que foquei tem índole diferente. A este respeito, cito Mário Tronti, quando diz: “A continuidade da luta é fácil: os trabalhadores só precisam de si próprios e do patrão diante deles. Mas a continuidade da organização é uma coisa rara e complexa a partir do momento da institucionalização: depressa pode passar a ser utilizada pelo capitalismo ou pelo movimento operário ao serviço do capitalismo.”5 Temos, hoje em dia, uma miríade de organizações, desde ONG’s, a partidos políticos, passando por associações estudantis, culturais ou outras, que podemos usar como plataformas de resistência, mas temos também de ter o cuidado para não deixar transformar a revolução em reformismo e a mudança de fundo em mero cuidado paliativo.
Tal como nas lutas sociais do passado, nomeadamente aquando da contestação ao regime disciplinar, há que recusar a normalização imposta, agora sub-repticiamente, pelo poder existente. Recusa esta que deve passar por um verdadeiro momento de criação, aquilo a que Nietzsche chamava “transmutação de valores”.


Por tudo isto, vejo-me forçado a concluir: a participação política dos cidadãos individuais, reunindo-se das mais diversas formas e associando-se, quer pelas suas semelhanças quer pelas suas particularidades, não é apenas desejável, mas sim vital para uma transformação da realidade, que possa constituir uma sociedade em que a base do poder se defina pela expressão das necessidades de todos.

“Na era pós-moderna, enquanto a figura do povo se dissolve, passa a ser o militante a figura que melhor exprime a vida da multidão: é ele o agente da produção biopolítica e da resistência contra o Império.”6





1Mão Morta, As Tetas da Alienação
2Gilles Deleuze e Félix Guattari, Anti-Oedipus
3Gilles Deleuze, Foucault (análise à obra de Michel Foucault)
4Deleuze e Guattari
5Mário Tronti
6António Negri e Michael Hardt, Império

domingo, maio 14

Voz OFF [A Monte]

ou Piquenique de Burguesas
ou « Criminosas? Inadaptadas? Incompreensíveis? »
...
[ é curioso, foi preciso o CD parar
...
de corropiar no discman
...
para eu conseguir escrever ]
...
...........................................................(,)
sobre (am)el(i)a
...
A descrição que a R. antecipou, quando me deu a ouvir estas
(a)me(l)iguices, foi:
...
« - Esta senhora é uma contadora de estórias. »
...
É a musa de Cesário Verde, na voz e nos versos. E os versos são dela, de Grabato Dias, Natália Correia, Fernando Pessoa, Hélia Correia, Laurie Anderson, José Saramago, Fausto Bordalo Dias, José Afonso, Sophia de Mello Breyner, José Mário Branco, Carlos Drummond de Andrade e Mário Cesariny. Com ou sem mamundações de Mia Couto ou mnemónicas populares. Para não esquecer que a cultura poruguesa, mais do que uma incursão familiar às grandes superfícies, é uma digressão solitária pelos corredores do Mercado da Ribeira.
...
Queria que me instalassem um estéreo FM nos dentes. - Mesmo a prateleira da Body Shop é uma paisagem bucólica, clareada por esse sol fleumático que refulge devagarinho, entorpece as costas e afaga a bochecha.
...
« - Minha mãe mandou-me à fonte e eu parti a cantarinha. » - cantava a senhora pequena e corcunda, de caracóis brancos arrebitados.
Minha mãe ensinou-me a beber água da fonte.
Eu aprendi a beber água por canecas de barro tosco, para exumar o gosto-mosto do vinho.
...
A Monte (2002)
Amélia Muge (e venham mais cinco)
a monte / a avó tina / o encontro / mamundo / sono de ser / o fado da sereia /
a garra do macaco / a irmandade dos sonhos / se não tenho outra voz /
nem contigo nem sem ti / um outro olhar sobre caxias / por trás daquela janela /
a veste dos fariseus / nª srª da azenha / o inferno de borges /
de passinho / para cinquentões / a monte II
...
« sem preocupações de perceber
...
onde acaba o artístico e começa o tecnológico.
...
sem preocupações de sinalizar heranças culturais ou carimbar
...
o que é popular ou não é. »

sábado, maio 13

Headphones [Out of Season]

ou Betty e as Fases da Vida
ou Risos-de-Vento
...
[ acreditem na Ö, é mesmo verdade:
...
os auscultadores podem salvar vidas ]
...
porque, embora o tinito das carruagens a descarrilar tenha
perturbadoras semelhanças com o Flight of the Bumblebee,
vira o disco e toca o mesmo, ainda que a faixa seja de
Rimsky-Korsakov,
não agrava o pensamento divergente de nenhum viajante.
...
Não há melhor estadio do desenvolvimento do que a adolescência para se descobrir Portishead. Principalmente quando se regista o quadro de síndrome amotivacional ou se tem o bichinho da melancolia crónica. É tempo de tropeçar de ternura pela Sour Times.
Isto é outra coisa. Em rigor idiomático, fora da época. É um álbum crepuscular e um prenúncio do carrossel solitário. Essa voz permanentemente fragmentada - uma corda no limbo emocional e outra na ataraxia existencial. Às vezes, faz lembrar como é cair para cima (i.e., no sentido contrário ao das folhas das árvores no Outono).
Como dançar fora do corpo sem perder o sentido dele.
...
Out of Season (2003)
Beth Gibbons e Rustin Man
mysteries / tom the model / show / romance / sand river /
spider monkey / resolve / drake / funny time of year / rustin man

...
« in equal parts melancholic, inspiring, dark and heart rendering.
...
largely acoustic and tinged with romanticism »

sexta-feira, maio 12

Vende-se

PUNKROCK / ROCK'N'ROLL / POPROCK

[ nota para a análise sociológica do comércio de sons
...
no circuito de transportes urbanos de Lisboa ]
...
Passam escassos minutos das duas e meia. Na paragem do 207, aos Restauradores, em frente ao cinema Éden, três miúdas que fugiram da escola fitam uma rodela de laranja cristalizada - quase-intacta e estática por cima do edifício.
Nesse deslumbramento anamnésico tentam des(me)lind(r)ar o significado do halo branco que a circunda.
Um rapaz aproxima-se. Quer vender-lhes uma canção. Mas só pode ser de um daqueles três géneros - desculpa-se referindo que a guitarra é o seu único instrumento.
...
Com certeza, já estabeleceram contacto com outros personagens. Eu recordo-me de Caetano Veloso, não cuidado e adulterado na estação de Metro de Saldanha. Só da boca p'ra fora.

quarta-feira, maio 10

Chess is a lovely game V

O bispo em h6 tornou-se um líder espiritual. Libertou a casa onde se encontrava para a torre e controla uma temível diagonal com tanta força que parece fazer vento sobre a mesma. As peças negras são livres e vão fazer estragos que as brancas não podem remediar.
Ele está lívido. Procura uma solução sem esperança alguma. Sabe que está perdido, que a posição ficou, num só lance, sem ponta por onde se lhe pegue. Perdeu. Todos os seus lances serão os gestos degradantes de um moribundo.
Põe tudo em causa. Onde é que errou? Será pior do que ela? Aquele lance duvidoso dela era bom ou ele é que continuou mal? Ele pior do que ela? Um jogo de xadrez é sempre uma metáfora sobre a vida, e esta derrota era uma analogia com a queda do seu modus vivendi. Como o ateu que descobre que afinal há uma entidade divina ou como o religioso que sente que não pecou em vão, ele sentia que nada fazia sentido. Sentia-se vazio, como se lhe tivessem tirado os órgãos todos.
Ela calcula, divertida, as diferentes formas de ganhar. Com mais ou menos estética, dependendo do que ele escolhesse jogar, ganhará o jogo. Mas, ao contrário dele, diverte-se mais com o facto de ter ganho sem medos, dançando com as suas peças, como se fosse uma delas, do que propriamente com a vitória em si. Aquilo fazia-lhe cócegas na alma e ela ria-se. A vitória era uma coisa boa, é certo, mas aquela empatia com o jogo sabia-lhe infinitamente melhor. Dentro da sua cabeça toca a I`ve got you under my skin de Frank Sinatra e, sem dar por isso, começa a mexer a cabeça ao ritmo da música.
Ele não consegue dar a volta. Não tem força para isso e nem sequer tenta especular com a posição. Arrasta as peças como se estivesse zangado com elas (como se a culpa fosse das peças) e vê, com olhos duros, como ela recupera o peão e ainda mantém o seu rei contra as cordas.
Abandona alguns lances depois e cumprimentam-se. Ele com olhos de quem só quer sair dali, e ela trauteando “don`t you know, blue eyes, you never can win…”.

(Há quem diga que aquilo foi só mais um jogo.
Outros dizem que eles estavam apaixonados e que namoravam (e que quem perdesse pagava um jantar). (outro happy end dá-lhes uma cerveja num bar qualquer)
Uma terceira versão reza que ele gostava dela e que nunca lho tinha dito. (contam que foi fumar a derrota para a praia)
Mas há quem continue a dizer que foi só um jogo.)

terça-feira, maio 9

Experiências em África

Notícia Washington Post: Peritos médicos nigerianos concluíram que a Pfizer Inc. violou a lei nigeriana, a lei internacional (Declaração de Helsínquia), e foi responsável pela morte de 11 crianças, ao usá-las como cobaias em testes de uma droga experimental para combater a meningite, o Trovan, sem o conhecimento e aprovação do Governo daquele país. A experiência era explicada aos pais das crianças, sendo-lhes requerido um consentimento verbal.
Em Novembro passado, um juiz federal norte-americano recusou um processo que acusava a Pfizer de não informar as famílias dos riscos da droga, de que este era um fármaco experimental e que podia ser recusado. O seu argumento foi: este é um caso para os tribunais nigerianos.
A Pfizer nega as acusações.

Numa altura em que, num desses ressurgimentos de nacionalismo e xenofobia, tenho sido confrontado com várias argumentações do tipo "O colonialismo já acabou, esses países africanos já são independentes há muito tempo, podem vender os seus recursos (naturais e humanos, entenda-se) como bem quiserem, portanto, já chega dessa história de se andar sempre a falar em ajudas humanitárias ou perdões de dívida." não consigo deixar de me perguntar...
"Que merda é esta!?!"
. Independentes?! Têm governos criteriosamente seleccionados pelo poder central do império, que se comprometem a legislar unicamente no sentido de liberalizar todos os sectores económicos, a abdicar de todas as empresas estatais que possam existir, abrindo, assim, os seus países a todo e qualquer abutre multinacional que lhes queira chupar o tutano, em troca de mais uns empréstimos concedidos pelo Banco Mundial e pelo FMI a juros absolutamente impossíveis de suportar e da gentileza de não serem invadidos e dizem-me que estamos a falar de países independentes?! Ficam-lhes com o petróleo, o gás natural, os minérios e com milhões de homens, mulheres e crianças, que vendem as suas vidas a troco de uma subsistência miserável e dizem-me que o mercado livre os vai salvar?! Usam-nos como cobaias de laboratório para criar medicamentos, que são vendidos a preço de ouro nos paraísos ocidentais, e que nunca chegarão a ser usados para tratar as SUAS crianças e dizem que trabalham para salvar vidas?!
E nós por cá... Vemos filmes sobre isto e pedimos a um deus qualquer para que aquilo não passe de uma triste história de ficção. Ou aos nossos circuitos neuronais para que esqueçam...


segunda-feira, maio 8

Chess is a lovely game IV

Ela pensa freneticamente, como quem tem de resolver (ou criar) um problema. Vai entrar em apuros de tempo [nos torneios, os jogadores de xadrez têm um tempo limite para efectuar determinado número de jogadas. Caso esse tempo seja ultrapassado sem esse número de lance jogado, o jogador perde independetemente da posição.]. O tic tac do relógio começa a parecer mais alto. E, de repente, como se tudo fizesse sentido, atira a sua dama para perto do roque adversário. Olha para o relógio, como quem está atrasado.
Ele começa a ganhar confiança. Previu aquele lance e não lhe pareceu que pudesse dar problemas de maior. Defende-se cuidadosamente, como um cirurgião que lida com uma operação complicada mas de bom prognóstico. Depois de alguns lances defensivos, a sua vantagem material virá ao de cima. Relaxa, como se tudo fosse já uma questão de paciência.
Começam os dois a acelerar o jogo. Ela porque tem o relógio a apertá-la. Ele, porque todos os seus lances são forçados pelos ataques dela e porque lhe agrada que seja o relógio dela a contar.
A coisa torna-se mesmo rápida, com poucos segundos entre os lances.
Ele está finalmente calmo. Finalmente, porque o xadrez custa-lhe. Não é uma coisa agradável, para se jogar num domingo de sol. É um compromisso. É uma coisa para se levar a sério, que não nos deve dar descanso enquanto não a honrarmos e ganharmos. Está finalmente calmo porque sente que está a honrar esse compromisso, como alguém que cumpre uma promessa.
Ela há muito que tem o olhar fixo e treme a mão de ansiedade por ter de jogar rápido.
Bf1 [Bispo para a casa f1] aponta ele. Agora cavalo e5 é pefeitamente estéril porque tenho sempre cavalo c4 que o força a sair de lá. Os xeques de dama são perfeitamente inúteis e só servem para defender-me com mais estabilidade ainda. Não estou a ver assim na...
Como uma bailarina, ela pega no bispo e joga-o uma casa da diagonal apenas.
Foi como se lhe tivessem anunciado a morte de um parente. Não tinha visto aquele lance.

domingo, maio 7

Drawing Restraint 9

escrito e realizado por Matthew Barney
com Björk e Matthew Barney
espaço sonoro Björk
[135 min.]
....
DR9 documenta o encontro entre dois convidados ocidentais que acompanham a viagem do navio japonês Nisshin Maru pelos mares de gelo do ritualismo milimétrico que envolve a pesca das baleias.
No biombo, a retrospectiva da sequência que decorre na tela.
Politics of the body. Sensualidade - hesitação, insinuação e autofagia.
Pérolas brancas a escorrer do cabelo pelo decote do vestido preto da mulher que toca um instrumento de sopro que não volta a surgir no plano final.
Âmbar de acontecimentos fortuitos.
...
«As hipóteses [de leitura] são inesgotáveis: narrativa política sobre a relação Japão-EUA; sobre a relação entre ocidente hegemónico e culturas tradicionais em vias de extinção; sobre rituais iniciáticos; sobre corpos sensuais que se fundem; uma história de amor, obra sobre a obra de Barney; obra sobre uma hipótese de relação entre música e imagens; coreografia de corpos que se diluem na natureza; encontro entre a criatividade e a resistência física. Tudo isso ou nada disso.»
«Quem olhar para ele apenas com lentes de cinema, é pouco crível que não saia desiludido.»
In Y, 04 de Maio de 2006
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Cinemas King - Sala 3
Sessões: de 2006/05/04 até 2006/05/10
13h40, 16h20, 19h, 21h45, 00h30 [Sex, Sab, Seg]
Endereço: Av. Frei Miguel Contreiras, 52 A
Acessos: Metro: Roma
Telefone: 218480 808

A Bolívia, o Brasil e o petróleo

Neste 1º de Maio, Evo Morales, presidente da Bolívia, cumpriu o que durante a campanha eleitoral prometera: nacionalizar o sector dos hidrocarbonetos bolivianos. Deu 180 dias para as empresas assinarem novos contratos a fim de poderem continuar no país e enviou contingentes militares para todos os campos petrolíferos do país, de forma a evitar as sabotagens que, por exemplo, a Venezuela sofreu, aquando da nacionalização decretada por Hugo Chavez.
Assim, meio século depois do Brasil ter tomado a mesma decisão, a Bolívia nacionaliza suas riquezas energéticas.
Este facto bastava para tornar insustentável a posição do presidente, governo e imprensa brasileiros, que saíram rapidamente em defesa da Petrobrás (a maior empresa estatal brasileira, criada precisamente devido à nacionalização da energia), revelando uma dualidade de critérios inadmissível, ao não reconhecer para a nação irmã o direito que reivindicaram como legítimo para si, mas o problema não fica por aqui.
Vejamos: "Há alguns anos, a sociedade brasileira fez campanha contra o gaseoducto Brasil-Bolívia. Um argumento vigoroso era a ameaça ambiental que o ducto representava. Mas havia outro argumento: as grandes transnacionais dos combustíveis – Amoco-Chevron, Total, Repsol, BP – queriam garantir ganhos, transferindo despesas da construção do ducto para a Petrobrás. Apesar das evidências de mau negócio que o gaseoducto representaria para o Brasil, foram impostos à Petrobrás o custo da construção, o risco cambial, a cláusula take-or-pay e a obrigação de compra de gás por US$ 60/kWh para a venda por apenas US$ 4. A imprensa aplaudiu. E o prejuízo de então foi muito maior do que o que a mesma imprensa acena agora em consequência da decisão do governo Morales.
Por que é que a imprensa foi conivente, então, e hoje vocifera contra a Bolívia – seria por um súbito acesso de nacionalismo? Ao contrário. Trata-se de defender os ganhos de uma empresa estatal – a Petrobrás – cujas acções são hoje controladas por accionistas privados dos Estados Unidos na proporção de 60% (sendo 49% de americanos e 11% de testas-de-ferro no Brasil). Isto foi fruto do criminoso gesto do então presidente Fernando Henriques Cardoso, ao assinar a Lei n. 9478/1997, que emenda a Constituição de 1988, quebrando o monopólio estatal e concedendo à empresas vencedoras de licitação de exploração de jazidas a propriedade do produto bruto e o direito de exportá-lo. Esta Lei também permite a venda de ações da Petrobrás a estrangeiros."(1)
Para mais, esta posição, tão rapidamente vincada pelo presidente Lula, ainda serviu, para a imprensa internacional, como argumento para "demonstrar" os malefícios da decisão de Morales: Até o Lula, um presidente de esquerda, acha a ideia má. logo, a ideia é má.
"Que o Brasil, e os outros países da região, compreendam o significado emancipador do gesto do governo Morales! Que aproveitem a ocasião para aprofundar seus laços de integração, introduzindo com firmeza uma dimensão solidária ao Mercosul, criando e ampliando gradualmente a integração energética do continente, e levando adiante com firmeza e coragem a construção solidária da Comunidade Sul-Americana de Nações."(1)
(1) A Bolívia tem direito à soberania sobre suas riquezas! por Rede Jubileu Sul/Brasil e Campanha Brasileira Contra a Alca e a OMC

sábado, maio 6

Chess is a lovely game III

Um pequeno cálculo leva-o à rápida conclusão que ela sacrifica um peão. Mas a que preço? Concede-lhe a iniciativa do jogo. O que se passa é que ele não vê problemas nisso: é um peão - vantagem material mais que suficiente para ganhar o jogo - contra uma iniciativa que, segundo as suas análises, não traz resultados práticos.
O que lhe incomoda é a imposição dela. Tem-lhe demasiado respeito (aliás...medo. Sempre teve medo dela) para menosprezar um lance sobre a qual ela pensou tanto, mas recusar o sacrifício seria acreditar mais nela do que nele. Era como sacrificar o seu amor - próprio. Uma e outra vez, re-capitulava o seu cálculo, à procura da armadilha que ele podia ter preparado.
Ela está sentada e está concentrada como se fosse elaa jogar. Sabe, de uma maneira feminina, (e logo, manipuladora) que ele vai aceitar o peão. Conhece-o. Sabe que - para já - não há nada de errado naquele peão. E, no entanto, intui que o mesmo está carregado de veneno. A posição que aí vem está cheia de armadilhas e nuances, a sua especialidade.
Todas as variantes que calcula são à procura de confusão. Os homens são simples: funcionam por pontos finais. Esta posição tem reticências. Ele vai cair. pensa ela, divertida.
E ele, que acho que não acreditar na sua lógica em prol de um bad feeling era tão insultuoso como acreditar em deus, aceitou o sacrifício. Mas, pela primeira vez no jogo, assim que poisou a peça, olhou para ela. Com medo que nos olhos dela se reflectisse uma variante que lhe pudesse ter escapado.

sexta-feira, maio 5

AS CRIADAS

As Criadas, de Jean Genet
Grupo de Teatro Miguel Torga
4 de maio de 2006, 21.30, fcml
Pois que a solução devesse estar no espelho recíproco entre as duas irmãs, saberia eu depois de me imiscuir no seu drama psíquico. Talvez tarde para acompanhar os pormenores e entre-linhas durante a peça. Amor-ódio, domínio-submissão-liderança-vassalagem em duas empregadas domésticas internas: duma para outra, das duas para a "senhora".
Cá fora, no escuro do táxi, a Clara dizia que se tinha sacrificado pela Solange. Preferia que a irmã estivesse numa prisão de muros a estar agrilhoada à necessária submissão àquela patroa que oscilava entre tratá-las como um móvel e mimá-las com objectos que já não precisava. Mas se isso transparece duma visão geral, se nos recordarmos de mais momentos dialogantes, podemos adivinhar uma dualidade no propósito de cada uma das personagens. O que se passa é que nenhuma é completamente boa ou má. _E agora lembrar os comportamentos de risco vs. grupos de risco_ Mas tornando a Clara e Solange, a primeira levou o "teatro" até ao fim. Dizia que tinha medo, e a outra arregalava mais os olhos e insuflava-se de raiva armando as garras com que apertaria o pescoço dela. Tinha medo, sim, mas o chá de tília bebeu-o sozinha.
A senhora, onde cabe nesta trama? Nunca se saberá se deu o casaco de peles e depois o desdeu (isto às vezes existe, mas tem outro nome) a Solange de propósito ou não. Nem isso nem saber se desconfiava da opressão que a sua ingenuidade ou indiferença disfarçadas impunham sobre aquelas duas jovens.
Está ainda dias 5, 6, 9, 11, 12 Maio 2006

quinta-feira, maio 4

Chess is a lovely game II

Índia de Rei, variante clássica. Ele ataca do lado de dama, em busca de uma vantagem mais posicional do que propriamente material e ela ataca do outro, em busca de nem mais nem menos do que o rei branco.
A questão é que ele é um jogador estratégico, de construção de planos que lhe dêem pequenas vantagens que mais tarde se tornam uma grande. E ela é uma jogadora táctica, uma imaginativa com um óptimo cálculo, que gosta das caças ao rei, de sacrifícios de peças e confusões.
E entretanto, a preparação teórica dele dá os seus frutos e a coisa corre exactamente como preparou milimetricamente em casa. Uma ligeira vantagem de espaço no lado onde ataca e nada de grave no lado onde tem que defender. O tabuleiro começa a agradar-lhe e, confiante, levanta-se para fumar um cigarro (sim, é permitido aos jogadores de xadrez levantarem-se).
Ela não gosta daquilo. Sente que a coisa está branda e que se está a deixar ir nas areias movediças dele. Começa a mexer o nariz como se fosse espirrar (mas não, é só mais um tique) e tem os olhos incomodados, semi – cerrados. Olha para ele, que fuma ao canto da sala, e faz um ar de menina a quem não estão a deixar brincar. Prende os cabelos com o elástico, poisa os cotovelos em cima da mesa, apoiando a cabeça nas mãos e começa a pensar.
Passam-se vinte e cinco longos minutos. Ele fumou e sentou-se à mesa, descontraído, confiante no seguimento do que preparou.
Ela está estranhamente séria e imóvel. E de repente, coloca a mão centímetros acima do cavalo. Hesita primeiro, e depois joga-o vigorosamente. Levanta-se e morde os lábios, contendo o sorriso malandro.
Ele aponta o lance placidamente, como se tivesse sido jogado outro qualquer, enquanto pensa mas que merda é esta?

Cantigas & Espigas .03

«Ninda, 4.Maio.71
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(...)
«A história lá vai andando, e tem lá muitas coisas que, apesar de tudo, me agradam. O que precisa é uma "refonte" enérgica, e talvez se consiga fazer daquele tumultuoso cafernaum uma obra asseada. O livro de Beckett, frouxo e repetitivo, salva-se através de um final muito bem esgalhado e que me agradou bastante. Agora o que eu não tenho é nada para ler. O que eu gostava de fazer desta história uma coisa em grande!
«De qualquer modo Setembro aproxima-se. Depois de amanhã, 4 meses disto, desta nem sempre agradável estadia, deste suplício real.
(...)
«Não te esqueças de mim. Saudades para a nossa Zézinha do seu pai
«António»
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António Lobo Antunes
In D'este viver aqui neste papel descripto - Cartas da guerra
Edições Dom Quixote, Lisboa, 2005

quarta-feira, maio 3

Cantigas & Espigas .02

Le Livre Noir des Journées de Mai congrega recortes de imprensa (relatos que descrevem, mas não explicam) e depoimentos espontâneos de transeuntes mantidos no anonimato. Organizado pela Union nationale des étudiants de France (U.N.E.F.) e pelo Syndicat national de l'enseignement supérieur (S.N.E. Sup.), com a participação de um comité de segurança das vítimas. Da colecção COMBATS - e, a propósito, acho que vão gostar de saber que nesta figuram os títulos Journal d'un Guérillero, Écrits et Paroles e Che Guevara.
Por precaução, não proponho uma interpretação do episódio que retalhei (vide abaixo). Se ele aqui está, por alguma razão é. E, afinal de contas, não queremos enviesar a óptica do leitor.
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«Un incendie a été allumé ce jeudi matin à la Sorbonne dans les locaux de la Fédération des groupes d'études de Lettres, l'organisation des étudiants de la faculté des Lettres de Paris.
«Le feu a ravagé une salle de réunions et détruit les meubles et le matériel de bureau (machines à écrire et ronéos) et les vitres de la salle.
«D'autre part, le téléphone a été arraché. Les dégâts sont estimés à 10 000 francs au minimum.
«L'incendie a été, semble-t-il, allumé par des éléments d'extrême droite. Le cercle barré d'une croix qui constitue l'insigne du mouvement « Occident », a en effet été peint sur la cheminée de la pièce.»
Le Monde, 3 mai
In Le Livre Noir des Journées de Mai

terça-feira, maio 2

Chess is a lovely game I

Ele leva aquilo a sério. Está de calções porque está calor, mas veste uma camisa por respeito. O xadrez é para se levar a sério. Acaba o cigarro sempre em silêncio e entra na sala. Faltam dez minutos para o jogo começar. Senta-se, começa a preencher o cabeçalho da folha de registo da partida e concentra-se. As pessoas passam à volta dele, olhando sérias para a mesa número um do torneio. Ele já nem as vê. De cor e salteado, revê uma a uma as variantes preparadas ontem à noite.
Ela, ao contrário do costume, não está atrasada. Entra com aquele ar entre o traquina e o competitivo (ao contrário do dele, que é um competitivo sério), de saia comprida e camisa fresca que lhe descobre os ombros. Senta-se, cumprimenta-o com ar bem disposto e procura a caneta na carteira (uma daquelas carteiras regateadas por uma bagatela numa feira numa cidade europeia qualquer) e preenche o cabeçalho da folha enquanto morde a tampa da caneta e revela os seus tiques de menina entusiasmada: pára de escrever várias vezes para olhar para o tabuleiro (como se ele já tivesse jogado e as peças não estivessem na posição inicial) e começa a mexer as pernas, em pequenos movimentos rítmicos.
Cumprimentam-se com um aperto de mão. Ela olha para os olhos dele. Ele só olha para o tabuleiro. E ele, de brancas, empurra com firmeza o peão de dama duas casas. Deixa ficar os dedos pousados sobre a peça mais um segundo, larga-a e carrega no relógio.
d4 escreve ele, com letra certinha e ela com letra viva e grande.

segunda-feira, maio 1

Cantigas, Espigas & Papoilas .01

Subsistência, Resistência e Persistência
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Numa gaiola edificada e guardada por abutres, um homem desperta. Não sonhou metáforas. A abstractização do raciocínio é um luxo pouco acessível aos famintos. Fala de "um rato (talvez o medo?)".
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«Mesmo que os meus dedos batendo na parede transmitissem notícias dum homem que podia responder:
- Bom dia,
de cabeça erguida, era terrível acordar no mês de Maio, com a certeza de que no dia doze a minha mãe não entraria pelo meu quarto, deixando-me na fronte um beijo, e rosas vermelhas sobre os meus vinte e sete anos."
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Manuel Alegre, "Rosas Vermelhas", in Praça da Canção